UOL




São Paulo, sexta-feira, 12 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Aborto, uma questão legal

SAULO RAMOS

Meu querido amigo Ives Gandra Martins publicou nesta página, em 5/12, artigo sob o título "Aborto, uma questão constitucional", prometendo analisar a matéria pelo "estrito prisma da Constituição, o que vale dizer sem conotações de natureza religiosa, sociológica ou de qualquer outra espécie". E sustenta que o artigo 5º da nossa Lei Maior assegura, entre os cinco direitos mais relevantes, considerados fundamentais, o direito à vida. E transcreve o comando constitucional: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...".
Conclui que essa garantia constitucional da inviolabilidade do direito à vida teria revogado parcialmente o Código Penal (art. 128) quanto às normas que permitem o aborto no caso de perigo à vida da gestante ou na hipótese de estupro. A lei penal, portanto, não pode permitir que se atente contra o feto concebido, porque o comando constitucional considera inviolável o direito à vida.


Nas minhas concepções cristãs continuo obedecendo à lição de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César


O argumento não resiste a um peteleco. O mesmo artigo da Constituição considera inviolável o direito à liberdade. Aplicada a hermenêutica do meu querido amigo, todo o Código Penal estaria revogado, uma vez que estabelece penas privativas de liberdade para todos os crimes, inclusive o de aborto, o que seria contrário à inviolabilidade de um dos mais importantes e relevantes entre os cinco direitos elencados naquela norma: o direito de ser livre.
Por se tratar de assunto muito sério, não quero mencionar os demais direitos daquele artigo, como a segurança e a igualdade, pois confesso que acabaria caindo na tentação da ironia.
Vamos continuar no terreno estritamente jurídico do aborto. O enunciado fundamental dos direitos do art. 5º da Constituição não é absoluto. O direito à liberdade permite que a lei institua prisão aos assassinos, aos assaltantes, aos ladrões de todas as espécies, aos autores dos inúmeros crimes previstos pela lei punitiva, tornando o exercício do direito à liberdade condicionado aos comportamentos em sociedade previstos pelo legislador ordinário segundo os costumes, a moral, a ética de cada lugar e de cada época.
Logo, a questão baixa de hierarquia. É essencialmente legal. Vamos, porém, limitar o debate ao aborto permitido por lei. Na primeira hipótese, nosso legislador definiu o que chamou de aborto necessário praticado por médico: "Se não há outro meio de salvar a vida da gestante". Ninguém deixa de reconhecer tratar-se de uma situação cruel, mesmo porque o médico terá de decidir, sob o peso de sua consciência profissional, entre o direito à vida da mãe e o direito à vida da criança nascitura. Se optar pela morte da gestante, estará cometendo um assassinato doloso por omissão; se optar pela morte do feto e salvar a vida da mãe, estará agindo de acordo com o que lhe permite a lei vigente, que, certa ou errada, é regra jurídica elaborada pelos homens e legisladores de sua época e de seu país.
No segundo permissivo, isto é, se a gravidez resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante ou, quando incapaz, por seu representante legal, há questões jurídicas igualmente angustiantes. Não me refiro ao horror da mulher ter de suportar uma gravidez indesejada, se for obrigada a gestar e dar a vida ao fruto de um crime de que foi vítima, o que configura angústia e dor moral, mas às complicações legais subsequentes. Se desconhecido o estuprador, a criança será registrada no civil como tendo pai desconhecido. Se a mulher for casada, não poderá recorrer a esse tipo de registro, pois a própria lei manda presumir que são do marido os filhos concebidos na vigência do casamento.
Se, por qualquer circunstância, o estuprador for conhecido, a mulher, obrigada a ter a criança, vai cometer falsidade no registro de nascimento, declarando pai desconhecido? Se for casada, não pode; se for solteira, ou menor, convém mentir no assento civil para esconder dos outros uma situação que toda a sua família conhece? Não é fácil tolerar essas soluções de horrível desespero. E haverá sempre falsidade ideológica.
Continuando no estrito limite das implicações jurídicas, permitido o nascimento da criança, tanto a mãe como os demais familiares terão obrigação legal de ampará-la, educá-la, levá-la à escola, cuidar-lhe da saúde, dar-lhe toda a assistência imposta por lei, pois o direito não obriga as pessoas a amarem nem mesmo seus filhos legítimos e desejados. É a frieza objetiva da lei.
Se for a criança registrada como filha do estuprador conhecido, a mãe e a família terão, para sempre, que conviver e honrar o nome do criminoso. E se a família tiver algum patrimônio, a criança terá sua parte na herança ou -o que pode acontecer se ela, havendo herdado, vier a morrer- o estuprador será o herdeiro do patrimônio da família que violentou.
Vejam quantas complicações jurídicas decorreriam se prevalecesse a tese do meu amigo Ives Gandra, inegavelmente um grande professor de direito, mas que, ao abordar a questão do aborto, deixou-se levar não por sua reflexão de constitucionalista, mas pela profunda formação religiosa, que é uma de suas múltiplas e grandes qualidades. Nas minhas concepções cristãs continuo obedecendo à lição de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. E esta questão é da lei dos homens, é matéria cesariana.

José Saulo Pereira Ramos, 74, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José Genoino: Liberdade de opinião e disciplina partidária

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.