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São Paulo, quinta-feira, 13 de fevereiro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Islã americano

Talvez o único prazer de assistir ao desagradável "Gangues de Nova York", filme do americano Martin Scorsese em exibição, seja visualizar como os Estados Unidos também foram um dia uma sociedade subdesenvolvida. Temos uma noção fantasiosa da democracia americana, como se ela houvesse nascido pronta, munida de suas famosas instituições exemplares.
Houve épocas, no entanto, em que ela foi tão corrupta, brutal e excludente como qualquer democracia de fachada. No filme, somos apresentados a um tempo -meados do século 19- em que os EUA não diferiam muito do que hoje chamam de Estado delinquente, convulsionados por tribos que se destroçavam com fanatismo, por ódio racial, sob a lei de talião.
O tema do 11 de setembro ainda é tabu no sempre pragmático cinema americano, mas não é outro o assunto subjacente a "Gangues de Nova York", como fica demasiado explícito na cena final, quando a transformação da cidade de imigrantes rústicos em megalópole mundial se refaz em segundos, conforme pontes e arranha-céus se erguem na tela até culminar nas torres gêmeas.
A força do cinema está em fornecer formas visuais em que uma época aprende a se reconhecer. O filme de Scorsese convida a um movimento retrospectivo no qual os americanos aparecem como uma sociedade que já foi, à sua maneira, "islâmica". E que ainda porta, embora sob feição domesticada, aquelas características que parecem inadmissíveis no "outro".
Essa seria uma percepção benévola, em que os americanos estão no topo de uma escada ao pé da qual o "outro" ainda engatinha. Mas um aspecto perturbador sabota a credibilidade desse enfoque. Não é que "Gangues" seja obra violenta; a violência é seu ângulo, seu credo e seu cacoete fílmico, a ponto de já não se saber o que ali é "denúncia" e o que é sensacionalismo.
Há uma insistência tão enfática na atmosfera de violência -reiterada em detalhes duvidosos como a profissão do mais temível chefe de gangue, açougueiro- que se poderia pensar em culto à força bruta, não fosse o efeito algo oposto, sua caricatura. Irlandeses e descendentes dos colonizadores se enfrentam nas ruas desbragadamente, como vikings numa tira de Hagar.
O espectador fica a se perguntar que fim levou tamanha inclinação agressiva -componente da mesma expansão de energias que mobilizou tantos imigrantes, recrutados por efeito de seleção natural, para que levantassem a maior e mais rica civilização técnica da história. Parte dessa violência se disciplinou como competição, parte se converteu na enfermidade oculta dos "serial killers" e parte se volta contra o exterior.
Países poderosos mantêm muitas áreas de interesse e atrito, sendo por isso levados com frequência à guerra, na qual costumam ser persuasivos. Os Estados Unidos devem ser o caso único, porém, de país que se mantém em guerra praticamente ao longo de toda a sua existência. Sua beligerância e seu êxito como civilização talvez sejam duas faces de uma mesma moeda.


Otavio Frias Filho escreve nesta coluna às quintas-feiras.


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