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OTAVIO FRIAS FILHO
Islã americano
Talvez o único prazer de assistir
ao desagradável "Gangues de Nova York", filme do americano Martin
Scorsese em exibição, seja visualizar
como os Estados Unidos também foram um dia uma sociedade subdesenvolvida. Temos uma noção fantasiosa
da democracia americana, como se ela
houvesse nascido pronta, munida de
suas famosas instituições exemplares.
Houve épocas, no entanto, em que
ela foi tão corrupta, brutal e excludente como qualquer democracia de fachada. No filme, somos apresentados
a um tempo -meados do século 19-
em que os EUA não diferiam muito do
que hoje chamam de Estado delinquente, convulsionados por tribos
que se destroçavam com fanatismo,
por ódio racial, sob a lei de talião.
O tema do 11 de setembro ainda é tabu no sempre pragmático cinema
americano, mas não é outro o assunto
subjacente a "Gangues de Nova
York", como fica demasiado explícito
na cena final, quando a transformação
da cidade de imigrantes rústicos em
megalópole mundial se refaz em segundos, conforme pontes e arranha-céus se erguem na tela até culminar
nas torres gêmeas.
A força do cinema está em fornecer
formas visuais em que uma época
aprende a se reconhecer. O filme de
Scorsese convida a um movimento retrospectivo no qual os americanos
aparecem como uma sociedade que já
foi, à sua maneira, "islâmica". E que
ainda porta, embora sob feição domesticada, aquelas características que
parecem inadmissíveis no "outro".
Essa seria uma percepção benévola,
em que os americanos estão no topo
de uma escada ao pé da qual o "outro"
ainda engatinha. Mas um aspecto perturbador sabota a credibilidade desse
enfoque. Não é que "Gangues" seja
obra violenta; a violência é seu ângulo,
seu credo e seu cacoete fílmico, a ponto de já não se saber o que ali é "denúncia" e o que é sensacionalismo.
Há uma insistência tão enfática na
atmosfera de violência -reiterada em
detalhes duvidosos como a profissão
do mais temível chefe de gangue,
açougueiro- que se poderia pensar
em culto à força bruta, não fosse o
efeito algo oposto, sua caricatura. Irlandeses e descendentes dos colonizadores se enfrentam nas ruas desbragadamente, como vikings numa tira de
Hagar.
O espectador fica a se perguntar que
fim levou tamanha inclinação agressiva -componente da mesma expansão de energias que mobilizou tantos
imigrantes, recrutados por efeito de
seleção natural, para que levantassem
a maior e mais rica civilização técnica
da história. Parte dessa violência se
disciplinou como competição, parte
se converteu na enfermidade oculta
dos "serial killers" e parte se volta contra o exterior.
Países poderosos mantêm muitas
áreas de interesse e atrito, sendo por
isso levados com frequência à guerra,
na qual costumam ser persuasivos. Os
Estados Unidos devem ser o caso único, porém, de país que se mantém em
guerra praticamente ao longo de toda
a sua existência. Sua beligerância e seu
êxito como civilização talvez sejam
duas faces de uma mesma moeda.
Otavio Frias Filho escreve nesta coluna às quintas-feiras.
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