São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2000


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Uma sentença exemplar


A notoriedade que Ellwanger procura alcançar visa a uma nova forma de anti-semitismo


JACK TERPINS

Há poucos dias, o Supremo Tribunal Federal tomou importante decisão: condenou Siegfried Ellwanger por crime de incitação ao racismo.
É a primeira vez, na América Latina, que alguém é condenado pela prática de racismo e discriminação. Embora o texto da condenação não faça referência, está claro: foi seu anti-semitismo explícito que primeiro motivou a denúncia da Federação Israelita do Rio Grande do Sul e depois a condenação.
Aliás, o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul entende que esse é o primeiro caso de condenação definitiva por anti-semitismo na América Latina.
Mas quem é, afinal, Siegfried Ellwanger, além de um senhor de pouco mais de 70 anos, certamente benquisto pela vizinhança, provavelmente capaz de distribuir balas e gentilezas às crianças?
Ellwanger tem uma editora em Porto Alegre, com o sugestivo nome de Revisão, que se especializou em rever, pela ótica da cegueira, a história mundial.
Ele ainda não era nascido quando seu herói, o pintor frustrado e obscuro cabo Adolf Hitler, atemorizava as massas alemãs com as suas tropas de choque nazistas formadas por marginais e desempregados. Mas já tinha 10 anos quando começou a Segunda Guerra, e de 15 para 16 anos quando ela terminou e todos os meios de comunicação da época exibiam os horrores da "guerra das guerras", que mutilou o físico e o espírito de milhões de pessoas e matou outros 50 milhões, dos quais pelo menos 6 milhões, isto é, cerca de 10%, só de judeus -embora os judeus fossem, já naqueles tempos, uma parcela ínfima da população mundial.
Ellwanger ia ao cinema e via nos documentários: a vida desses judeus foi devastada em escala industrial e seus restos viraram cinzas e pó como numa linha de produção. Lia em jornais e revistas trechos do julgamento de Nuremberg, em que os réus nazistas admitiam a culpa pelo assassinato em massa. Essa trágica prática criou dois novos conceitos e um período negro na história do homem: "Holocausto" e "genocídio", este entendido como a decretação da morte de uma parcela do gênero humano.
Após a guerra, muitos dos carrascos que conseguiram fugir e escapar dos longos braços da Justiça dos homens não mudaram seus rostos, mas alteraram suas personalidades como aqueles bons velhinhos sempre dispostos a ajudar os semelhantes, participar da associação do bairro, distribuir balas entre as crianças, parecer simpáticos aos vizinhos, demonstrar sua capacidade de organização e disciplina, fazer os outros obedecerem. O sr. Ellwanger não tinha do que fugir, mas se impôs uma tarefa: rever a história, reler os fatos, queimar os filmes, destruir os registros históricos e apagar a memória.
Constituiu a editora Revisão para publicar a sua visão particular da história. Por ela, os alemães passam de réus a vítimas. Aos judeus, reserva o papel de vilões e garante o banco dos réus. Nos últimos anos, e com suspeita insistência, tentou convencer as livrarias a aceitar seus livros. Diante da recusa sistemática, mais recentemente passou a se valer dos recursos da informática, entupindo alguns conhecidos sites da Internet com informações distorcidas sobre a Segunda Guerra.
A quem lhe perguntar, diz que não é anti-semita, até porque não fica bem, mas à página 59 do livro "Holocausto: Judeu ou Alemão", escrito e editado por ele, afirma que "é de lamentar que todo Estado, há tempo, não os tenha (aos judeus) perseguido como a peste da sociedade e como os maiores inimigos da felicidade da América".
A notoriedade que o senhor Ellwanger procura alcançar, com a venda quase clandestina de seus livros, os seguidos processos e essa condenação, visa a dar curso a uma nova forma de anti-semitismo, que se abriga na prática do negacionismo enquanto brinda com alguma respeitabilidade as ideologias da direita racista, reabilitando certos aspectos do nazismo do qual se expurga -ah, bom- seu caráter criminoso, expresso na forma do Holocausto que produziu. Ao mesmo tempo em que pregam a negação dos fatos históricos, os arautos dessa direita racista, intolerante e discriminatória procuram enaltecer as supostas virtudes do nazismo, vestindo-o com a capa de um regime modernizador.
Dessa forma, imaginam conseguir neutralizar os aspectos genocidas do nazismo enquanto distorcem a sua imagem e a de Hitler. Esse problema não está apenas nas minorias radicais, mas se abriga principalmente em partidos da direita européia, por exemplo, bastante populares e que exploram o desemprego provocado pela globalização da economia. Em alguns desses países, como na França, a lei pune racismo, anti-semitismo e crimes contra a humanidade, obrigando os políticos da extrema direita a usar uma linguagem em código, que fala em "direito à diferença" quando, de fato, quer difundir a desigualdade e a discriminação.
Além disso, o revisionismo do sr. Ellwanger e o negacionismo em outros países atuam como se fossem movimentos sincronizados e procuram relativizar, banalizar e, finalmente, negar, contestar, recusar e repudiar, como se nunca tivesse existido, o significado histórico do Holocausto.


Jack Terpins, 55, engenheiro, é presidente da Conib (Confederação Israelita do Brasil).



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