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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
O precipício
Três conjuntos de fatos, sem
conexão aparente, demarcam o
abismo em que o governo Lula ameaça cair. E impõem aos inconformados
uma grande tarefa.
O primeiro grupo de fatos é o descompasso entre a impressão do estado
em que se encontra a economia brasileiro e o estado em que ela de fato está.
A impressão é de êxito no afastamento
de crise de confiança, aplausos mundiais à solidez da política econômica,
reversão do déficit das contas externas
e consequente prontidão do país para
iniciar novo ciclo de crescimento. A
realidade é de rendição a um ideário
que jamais assegurou crescimento em
nenhum país grande na história contemporânea. As políticas monetária e
fiscal continuam a conspirar contra o
crescimento. Com a valorização do
real, o equilíbrio das contas externas
depende cada vez mais da estagnação
interna. Não há o menor sinal de medidas que troquem as ilusões do fiscalismo e do mercantilismo pela mobilização da poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo, pela
valorização sustentável dos salários,
pela democratização do acesso aos
instrumentos do trabalho e da produção e pela multiplicação de exemplos
de excelência no ensino público.
Agradando aos mercados e ajudando
a calar os trabalhadores, o suposto
progressista no poder consegue ser
aceito pelos que mandam no mundo.
Nunca, porém, esse estratagema de
confusão e de medo traz desenvolvimento ou justiça. Sempre acaba mal.
A segunda série de fatos é o esvaziamento das instituições e das práticas
republicanas em proveito da hegemonia política. Já frágeis, os partidos da
"base aliada" foram humilhados e reduzidos a linhas auxiliares, com filiações e desfiliações estimuladas pelo
Palácio. A mídia, em grande parte
quebrada, vem sendo aliciada por um
governo que parece determinado a tirar o máximo proveito da dependência econômica dela; basta ligar a televisão para ver. Os "lobbies" e as corporações são contemplados ou punidos
de acordo com o mesmo cálculo de intimidação e de cooptação. E tudo isso
encontra pretexto na pretensa necessidade de reconciliar com os interesses endinheirados o poder político dos
ex-militantes de esquerda.
A terceira soma de fatos é a mais
obscura e a mais perturbadora. Nada
indica que o primeiro escalão do governo se aproveite pessoalmente da
relação com a plutocracia. Mas e se a
obsessão com a hegemonia enfraquecer o respeito pelos limites morais e legais? Se grandes empresários forem
convocados ao Palácio para que se
lhes peçam contribuições destinadas a
saldar dívidas de campanha do PT e
de partidos aliados? Se se abrirem as
portas para negócios do interesse de
contribuintes à campanha passada? A
víbora envenenaria o governo antes
mesmo de amadurecerem os frutos
amargos da política econômica de
rendição. Tudo isso se evitaria com o
financiamento público das campanhas eleitorais. Carente desse remédio, a República precisa de cidadãos
que a socorram, armados da primeira
virtude cívica, que é a coragem.
O país, paciente, continua, em sua
maioria decisiva, a apoiar o governo
Lula. Todos nós que nos decidimos a
resistir não devemos confundir nossa
causa com qualquer sectarismo de esquerda. Não sabemos hoje por onde
começar ou com que instrumentos.
Não podemos prever se, ao final, seremos acompanhados por 50 brasileiros
ou por 50 milhões. Tanto maior, imerecidamente maior, a sorte daqueles
que iniciarem a luta agora.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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