UOL




São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Omelete e ovos

O discurso de acusar o adversário de incoerência e de ter mudado é mais velho que a sé de Braga, como dizem os portugueses e nós repetimos no Brasil. Aliado à pecha de corrupção, esse ataque esteve presente em todas as batalhas políticas. Essa prática consta do primeiro documento sobre democracia, que é o discurso de Péricles no elogio aos mortos da Guerra do Peloponeso, onde entre a colocação da necessidade de um governo do povo, em contraposição ao poder absoluto, ele aproveita para acusar os inimigos do roubo do ouro da estátua de Fídias.
Nos tempos modernos, Roosevelt passou toda uma campanha a explicar as razões pelas quais teria de levar os Estados Unidos à Segunda Guerra Mundial, ele que falara sempre em manter o país longe da disputa. No Brasil, lembremos os Andradas, que mudaram na Independência de liberais para radicais, e Gonçalves Ledo, porque os denunciou e sentiu na pele os efeitos dessa mudança.
O governo atual terá de enfrentar esse embate. O tiroteio vem do fogo amigo e dos partidos de oposição, à frente o PSDB e o PFL, porque acham que mudou para trás ou mudou para a frente.
Rui Barbosa foi o único que não deu bola quando foi acusado de ter mudado. Respondeu: "Não mudam as pedras; não quero mudar do bem para o mal nem do mal para o pior". Carlos Lacerda, quando se aliou a Juscelino e a Jango, justificou sua atitude como necessária à restauração democrática.
Maquiavel, o grande estudioso do poder, e não o esperto estereótipo em que o fixaram, sentenciou que, no Estado, "uma mudança prepara a outra", num processo contínuo em que a dinâmica da política dita as regras. É um pouco como a lei de Lavoisier de que na natureza tudo se transforma e nada se perde.
É preciso compreender que mudar exige uma grande coragem. É muito mais fácil ficar parado, não mudar nunca. No caso das reformas, só a decisão de fazê-las é estopim para grandes confrontações. O dilema de todo presidente é o difícil equilíbrio entre executar o programa de seu partido ou um programa que seja possível, que esteja num espaço de consensos. Numa eleição majoritária de dois turnos, o eleito é sempre um candidato de coalizão. Coalizão de votos e de vontades. Muitas vezes as decisões a tomar são sofridas. Mas, repito, quem governa lida com realidades, não com abstrações.
Em determinados momentos, é preciso ter coragem de enfrentar situações de risco. É o que estamos testemunhando neste entrechoque de pressões e contrapressões, como a marcha de protesto que ocorreu em Brasília. O presidente Lula está começando a viver este momento. Daí a curiosidade internacional sobre a sua decisão de partir para as reformas. Não julgavam possível um homem oriundo da área do trabalho ter visão pública e qualificação política para enfrentar desafios. A esquerda e a classe operária eram estigmatizadas como populistas e desagregadoras.
Mudança e reforma são duas palavras que durante um século estiveram associadas à demagogia e ao oferecimento de soluções verbais e fáceis para problemas impossíveis. Estamos vivendo uma reavaliação da imperfeita compreensão desses conceitos.
Como dizia Tancredo Neves, que gostava de ensinar por aforismos, "não se faz omelete sem quebrar ovos".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: Meios e fins
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.