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JOSÉ SARNEY
Omelete e ovos
O discurso de acusar o adversário de incoerência e de ter mudado é mais velho que a sé de Braga, como dizem os portugueses e nós repetimos no Brasil. Aliado à pecha de corrupção, esse ataque esteve presente
em todas as batalhas políticas. Essa
prática consta do primeiro documento sobre democracia, que é o discurso
de Péricles no elogio aos mortos da
Guerra do Peloponeso, onde entre a
colocação da necessidade de um governo do povo, em contraposição ao
poder absoluto, ele aproveita para
acusar os inimigos do roubo do ouro
da estátua de Fídias.
Nos tempos modernos, Roosevelt
passou toda uma campanha a explicar
as razões pelas quais teria de levar os
Estados Unidos à Segunda Guerra
Mundial, ele que falara sempre em
manter o país longe da disputa. No
Brasil, lembremos os Andradas, que
mudaram na Independência de liberais para radicais, e Gonçalves Ledo,
porque os denunciou e sentiu na pele
os efeitos dessa mudança.
O governo atual terá de enfrentar esse embate. O tiroteio vem do fogo
amigo e dos partidos de oposição, à
frente o PSDB e o PFL, porque acham
que mudou para trás ou mudou para a
frente.
Rui Barbosa foi o único que não deu
bola quando foi acusado de ter mudado. Respondeu: "Não mudam as pedras; não quero mudar do bem para o
mal nem do mal para o pior". Carlos
Lacerda, quando se aliou a Juscelino e
a Jango, justificou sua atitude como
necessária à restauração democrática.
Maquiavel, o grande estudioso do
poder, e não o esperto estereótipo em
que o fixaram, sentenciou que, no Estado, "uma mudança prepara a outra", num processo contínuo em que a
dinâmica da política dita as regras. É
um pouco como a lei de Lavoisier de
que na natureza tudo se transforma e
nada se perde.
É preciso compreender que mudar
exige uma grande coragem. É muito
mais fácil ficar parado, não mudar
nunca. No caso das reformas, só a decisão de fazê-las é estopim para grandes confrontações. O dilema de todo
presidente é o difícil equilíbrio entre
executar o programa de seu partido
ou um programa que seja possível,
que esteja num espaço de consensos.
Numa eleição majoritária de dois turnos, o eleito é sempre um candidato
de coalizão. Coalizão de votos e de
vontades. Muitas vezes as decisões a
tomar são sofridas. Mas, repito, quem
governa lida com realidades, não com
abstrações.
Em determinados momentos, é preciso ter coragem de enfrentar situações de risco. É o que estamos testemunhando neste entrechoque de
pressões e contrapressões, como a
marcha de protesto que ocorreu em
Brasília. O presidente Lula está começando a viver este momento. Daí a curiosidade internacional sobre a sua
decisão de partir para as reformas.
Não julgavam possível um homem
oriundo da área do trabalho ter visão
pública e qualificação política para enfrentar desafios. A esquerda e a classe
operária eram estigmatizadas como
populistas e desagregadoras.
Mudança e reforma são duas palavras que durante um século estiveram
associadas à demagogia e ao oferecimento de soluções verbais e fáceis para problemas impossíveis. Estamos vivendo uma reavaliação da imperfeita
compreensão desses conceitos.
Como dizia Tancredo Neves, que
gostava de ensinar por aforismos,
"não se faz omelete sem quebrar
ovos".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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