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São Paulo, sexta-feira, 13 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O cinema e a cidade

NABIL BONDUKI

A desertificação das ruas nas cidades contemporâneas é um dos sintomas mais graves da decadência da civilização urbana. Detectada com primor por críticos da cidade moderna, como Lewis Munford e Jane Jacobs, ainda na década de 50 nos EUA, a crescente organização das cidades em unidades autárquicas com acesso por meio de automóveis, cercadas e vigiadas, como condomínios fechados, hipermercados e shopping centers, tem levado a um processo de abandono das ruas como espaço público e de decadência do seu comércio e lazer, vitais para a cidade e para a qualidade de vida urbana.
A morte dos cinemas de rua é um dos resultados mais graves desse processo. Embora nos últimos anos o número de salas tenha se elevado significativamente em São Paulo, em decorrência do aumento das salas multiplex nos shoppings, é notável o encerramento das atividades dos cinemas que se abrem diretamente para as calçadas ou localizados nas galerias tradicionais.
Cinemas que fazem parte do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade, como o Art Palácio, Metrópole, Marrocos, Copan e Paissandu, obras de grandes arquitetos como Rino Levi, foram fechados acompanhando a decadência do centro de São Paulo. As poucas salas que resistiram na região exibem filmes pornográficos; muitas viraram igrejas e outras permanecem vazias, talvez aguardando alguma ação do poder público para reverter um processo que, pelas vias do mercado, é inevitável.
O processo de fechamento não se limita ao centro. Com raríssimas exceções, os cinemas de bairro encerram as atividades. Agora a decadência já atinge em cheio a região da Paulista e da Augusta, último baluarte dos cinemas de rua e galeria. Na Augusta, muitos já haviam sido fechados décadas atrás. Os que resistiam exibem (ou exibiam) filmes do chamado circuito de arte, alternativos à hegemonia hollywoodiana na distribuição. Já fecharam os cines Astor, Alvorada 1 e 2 e os três Gazetas; outros estão ameaçados, como o Cinearte e o Belas Artes.
A decadência desses cinemas leva à morte da própria rua. É o que se tem verificado no entorno do Belas Artes, no topo da Consolação, que nos anos 80 era um dos "points" mais movimentados da cidade e que agora é um trecho fantasma. A desertificação das ruas gera medo, insegurança e violência. Por outro lado, a abertura do Espaço Unibanco recuperou seu entorno, criando oportunidades para o comércio da rua. Cinemas geram movimento e vida, que extravasam para as ruas.
Com base nesse diagnóstico, propus a isenção de impostos municipais para os cinemas de rua, mediante contrapartidas que permitam colocar em prática uma política municipal de apoio ao cinema, dentre as quais:
Os cinemas beneficiados devem dar à prefeitura uma quantidade de ingressos equivalente a 110% do valor da isenção concedida, para uso de estudantes e professores da rede municipal e de jovens e idosos participantes de programas sociais voltados à inclusão cultural;


Agora a decadência já atinge em cheio a região da Paulista e da Augusta, último baluarte dos cinemas de rua e galeria


Os cinemas beneficiados devem exibir no mínimo 30% mais filmes nacionais do que estabelece a lei federal, e, dentre estes, no mínimo 20% devem ser documentários de longa-metragem;
A celebração de parcerias entre as subprefeituras e os cinemas em de projetos de recuperação urbanística do entorno das salas beneficiadas.
A concretização desse projeto trará ganhos para todas as partes envolvidas. Diferentemente de outros tipos de isenção, a prefeitura estará ganhando, pois receberá em ingressos um valor superior ao que deixa de receber, podendo implantar um necessário programa de inclusão cultural e formação pública na área do cinema. Ressalte-se que, hoje, o preço do ingresso exclui a maioria dos paulistanos do acesso a esse lazer.
A produção nacional, incluindo os documentários, ampliaria suas oportunidades de exibição e poderia ganhar um público que, hoje, por incapacidade econômica e por falta de hábito, não frequenta cinemas. Finalmente, nesse círculo virtuoso, os cinemas de rua, que hoje têm uma alta capacidade ociosa, poderiam ter uma ocupação plena, com redução dos custos, e colaborar na recuperação urbanística do entorno.
O apogeu da Cinelândia paulistana deu-se nos anos 50, quando São Paulo completou o seu quarto centenário. Naquela época, todos os cinemas se localizavam nas ruas ou nas galerias. Nesse contexto inaugurou-se o Cine Marrocos, uma jóia do patrimônio arquitetônico, com 1.400 lugares, que hoje está fechado, sem uso. A reabertura do Cine Marrocos, no seu 50º aniversário e nos 450 anos de São Paulo, será um presente para a cidade. Talvez uma sala popular, com ingressos gratuitos, utilizada por jovens que nunca foram ao cinema.

Nabil Georges Bonduki, 48, arquiteto e urbanista, é professor de arquitetura da USP e vereador, pelo PT, no município de São Paulo.


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