São Paulo, segunda-feira, 13 de junho de 2005

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TENDÊNCIA/DEBATES

Funcionário: público x da população

ADIB JATENE

O funcionário público, selecionado por concurso público, trabalha nas repartições e em diferentes órgãos dos três níveis de governo. Boa parte desses funcionários não tem contato direto com o público.
Os que têm contato direto, como os dos serviços de saúde, trabalham em unidades diferentes. Em algumas, a utilização do serviço é ocasional, como aquela dos grandes hospitais e prontos-socorros. Nessas unidades, o funcionário mora nos mais diversos pontos da cidade e vem para o seu trabalho atender pessoas que, por sua vez, vêm de vários bairros ou cidades. Não há vínculo entre quem presta e quem recebe o beneficio, a não ser naquele período em que se utiliza da unidade.
Esse sistema, para unidades locais de baixa complexidade, mas de uso contínuo, tem se mostrado, através dos tempos, inteiramente inconveniente.
Quando exerci as funções de secretário de Estado, construímos cerca de cem centros de saúde na área metropolitana. Pretendia que os funcionários, contratados para visitação domiciliar, morassem na área abrangida pelo centro de saúde. Isso foi impossível exatamente pela obrigatoriedade do concurso público. O resultado foi, a longo prazo, a baixa eficiência dos postos de saúde.
Os aprovados freqüentemente não moravam na área, não tendo relação com a população que utilizava o centro. Freqüentemente, pessoas com qualificação muito maior do que a exigida de um visitador -muitas vezes, até com título universitário- eram admitidas por concurso para função bem inferior à sua capacitação. O principal, porém, é que, freqüentemente, não viviam na área abrangida por sua unidade, dependendo de condução, com todos os problemas daí resultantes.
Quando assumi o ministério, vislumbrei uma nova oportunidade. O Programa dos Agentes Comunitários de Saúde foi uma engenharia tupiniquim que tem mostrado coerência, bom senso e eficiência. Se não é possível fazer com que médicos e enfermeiros morem na área onde atuam, é possível selecionar e treinar moradores que vivem, há pelo menos dois anos, nos micronúcleos em que vão atuar.


Transformar o agente comunitário, funcionário da população, em funcionário público é um retrocesso

A estratégia cria as miniáreas, com 150 a 250 famílias, dependendo da concentração da população, e, entre os moradores desses núcleos, seleciona-se uma pessoa, com a participação da própria comunidade, para ser admitida e treinada como agente comunitário, que vai visitar cada casa pelo menos uma vez por mês, cadastrar a população, identificar portadores de doença crônico-degenerativas, acompanhar as gestantes, verificar a caderneta de vacinação e divulgar as medidas higieno-dietéticas aos seus vizinhos. Não precisa tomar condução e está permanentemente em contato com os moradores desse núcleo, que envolve de 600 a mil pessoas. Mais que funcionário público, é funcionário da população que ele acompanha.
Para cada cinco ou seis agentes se agregam um médico, uma enfermeira e um ou dois auxiliares de enfermagem, que não precisam morar na área, mas que trabalham no posto, em regime de tempo integral, restabelecendo vínculo entre quem presta e quem recebe o atendimento. A população sabe quem são os profissionais que cuidam dela e os profissionais conhecem as pessoas que atendem com a intervenção dos agentes comunitários. Quando a pessoa não pode ir ao posto, os profissionais vão à residência.
Como se vê, os profissionais que não têm obrigatoriedade de morar onde as pessoas moram poderiam até ser escolhidos por concurso público. Quando isso ocorre, há sempre os pleitos patrocinados por políticos de transferências para áreas melhores, deixando as mais carentes descobertas.
Já os agentes comunitários não podem ser escolhidos por concurso público, sob pena de destruir o modelo, baseado exatamente no fato de ser ele morador há pelo menos dois anos da microárea e cuidar dos seus vizinhos.
Daí a importância do contrato de gestão com entidades sem fins lucrativos para administrar áreas de atendimento. Evidente que será exigido contrato pela CLT, como de resto tem toda a população que é empregada: com Fundo de Garantia, contribuição do INSS e todas as demais garantias que os empregados no país possuem. O poder público tem o controle do processo, faz as avaliações e recebe as informações epidemiológicas altamente confiáveis.
Dá gosto visitar as unidades implantadas e verificar o verdadeiro controle das parcelas de população, cobertas pelo Programa de Agentes Comunitários e Programa Saúde da Família.
Em São Paulo, as 55 equipes de saúde da família, administradas pela Fundação Zerbini há sete anos, possuem dois ambulatórios de especialidade, com 12 especialistas em cada um. Cumprem jornada em tempo parcial e são a retaguarda dos médicos de família, que ajudam a capacitar e com quem mantêm relações diretas. Todas as unidades possuem tratamento odontológico e equipe volante de saúde mental. Em Sapopemba, há equipe de fisioterapia, fonoaudiologia e uma casa de parto, que já realizou perto de 3.000 partos humanizados, sem nenhum óbito materno. Um hospital local de 50 leitos, para tratar situações mais simples, que será proximamente inaugurado em Sapopemba, dará suporte, de um lado, às equipes de saúde de família, e, de outro, ao hospital regional da área. Esse modelo, ampliado nas unidades administradas, deveria ser copiado para o resto do país.
Transformar os agentes comunitários, que são funcionários da população, em funcionários públicos é um retrocesso que colocará a perder a mais importante política pública de saúde implantada no país.

Adib D. Jatene, 75, cardiologista, é professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP e diretor-geral do Hospital do Coração. Foi ministro da Saúde (governos Collor e FHC) e secretário da Saúde do Estado de SP (governo Maluf).

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