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Paixão nacional
Futebol brasileiro simboliza trajetória do país, desde a valorização da mestiçagem ao enfrentamento maduro de dificuldades e decepções
Discute-se até hoje o porquê de
o futebol ter-se enraizado tão bem
no Brasil, a ponto de configurar o
principal fenômeno de psicologia
coletiva no país e contribuir para o
âmago da autoimagem nacional.
Como costuma acontecer nos debates futebolísticos, essa não é
uma discussão conclusiva.
Seria algum atavismo desenvolvido nos longos séculos de escravidão, como sugeriu Gilberto
Freyre? Já que aos escravos era
proibida a prática de qualquer luta, teriam levado a extremos sua
habilidade para dançar e até lutar
de forma dissimulada com as pernas, origem da capoeira e, quem
sabe, da propensão ao futebol.
Ou será que o esporte de elite,
importado por britânicos no fim
do século 19, teria exercido apelo
irresistível na mentalidade popular, incitando um desejo de emular o modelo prestigioso? Os historiadores do futebol ressaltam o papel dos primeiros gandulas, jovens que libertaram o futebol ao
levá-lo dos ginásios engomados
dos clubes elegantes de São Paulo
e do Rio para as peladas de várzea
e de rua nos bairros operários.
De toda forma, o futebol cristaliza, num amálgama com o samba,
a síntese identitária do país. Sem
prejuízo do que possa haver de folclórico ou mistificador em torno
desse fato, é interessante percorrer toda a sua dimensão simbólica. Porque o futebol brasileiro, em
vários aspectos, desdobra e representa o esforço do país para se
constituir como nação moderna.
O reconhecimento de que somos um país mestiço e que nossa
força deriva justamente da confluência genética e cultural -haverá maior revelação do que essa,
reiterada pelo futebol a gerações
de brasileiros? De Friedenreich a
jogar de touca para esconder o
"cabelo ruim" a Leônidas, já saudado com o suntuoso epíteto de
"Diamante Negro", decorre a década de 1930, quando o futebol
nacional foi tomado por profissionais (quase todos de origem negra
e humilde) e pela primeira vez, na
expressão que se tornaria clichê,
"encantou o mundo".
E o que dizer do trauma de 1950,
tão indelével no psiquismo de tantos brasileiros quanto incompreensível, na sua aparente leviandade, para quase todo estrangeiro? Naquela decepção devastadora, o futebol brasileiro se tornou
adulto; uma nação inteira, em termos psicológicos, terá aprendido
a temperar o princípio do prazer,
próprio da infância, com o princípio da realidade.
Depois da retumbante sequência de 1958, 1962 e 1970, era como
se os europeus aprendessem afinal a deter a inventividade do futebol brasileiro, e este fosse forçado a absorver novos rigores técnicos. Não tem sido outra a dialética
entre o nosso futebol e o argentino
e o outro polo -a Europa- que
pesa nesse esporte hoje efetivamente global. Também nesse sentido o futebol tem um simbolismo
que transcende os estádios.
Como não poderia deixar de ser,
esta Folha deseja sorte à seleção
brasileira na África do Sul. Que
nossos jogadores possam acrescentar novos reflexos ao espelho
da nação e que esta se reconheça
na projeção internacional de seus
exemplos notáveis de criação, trabalho de equipe, elegância, espírito esportivo e respeito pelo outro.
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