São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2004

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JOÃO SAYAD

Onze de Setembro

A ficção não consegue escapar para muito longe da realidade. A realidade não consegue aparecer nua, sem estar vestida de analogias e de metáforas criadas pela ficção.
Filmes americanos tratam sempre do mesmo tema: Super-Homem, Batman e Homem-Aranha são heróis onipotentes, que voam, sobem pelas paredes e sozinhos são capazes de combater as forças ocultas do mal e salvar Gotham City ou Nova York. Lutam contra as forças do mal e contra a negligência da polícia ou das autoridades que não conseguem proteger a cidade. A mesma estrutura serve para filmes sobre "serial killers", para dramas de amor ou filmes históricos.
Os italianos vêem o mundo através da família. Na guerra, a família sofre o fascismo. Depois, o neo-realismo mostra a família na pobreza do pós-Guerra. Mais tarde, a influência da Itália próspera e reconstruída na decadência sobre a vida familiar.
No passado, os filmes brasileiros tratavam do homem do campo, de suas crenças religiosas e da opressão dos coronéis. Depois, da opressão do regime militar e da tortura. Agora o tema é a opressão do homem urbano, pobre ou ameaçado pela violência.
Há três anos, Nova York sofreu o ataque terrorista que matou milhares de pessoas e mudou o mundo. O 11 de Setembro materializou o pior pesadelo americano -forças ocultas do mal, caindo do céu, espalhando morte e destruição. Órgãos de segurança e de informação são criticados por negligência e incapacidade. Cada candidato tenta convencer os eleitores de que é o super-homem capaz de proteger o país do terrorismo, apesar da ineficiência dos órgãos de segurança.
Na Itália, Berlusconi propõe modificar a legislação sobre a televisão, protegendo os interesses da sua empresa. A imposição de legislação que beneficia a empresa do presidente da República foi criticada pela oposição, mas é um escândalo menor do que seria nos Estados Unidos ou no Brasil. Como aceitar uma decisão como essa numa república? Os antropólogos têm a resposta: a legislação proposta por Berlusconi protege os negócios da sua família e, dessa forma, apesar de escandalosamente parcial, consegue ser legitimada.
No Brasil, o PT, o partido dos oprimidos, chega ao poder. Consegue aprovar a contribuição dos inativos, aumenta o superávit primário e mantém juros altos. Apesar da política econômica, é visto pelas massas brasileiras e pela opinião pública internacional como o governo de um presidente-operário.
Não conseguimos distinguir as coisas da percepção que temos das coisas. "O amarelo-limão é ácido como o limão, que é ácido porque é amarelo". Quando Mário de Andrade disse "não sou nacionalista, sou brasileiro", estava apenas afirmando que era prisioneiro da língua, dos livros, das histórias e das paisagens brasileiras, como todos os que nasceram e vivem aqui.
Americanos vêem o mundo como americanos, italianos, como italianos.Todos nós, homens e mulheres do início do século 21, vemos o mundo a partir das ficções do nosso tempo. Nunca saberemos o que é sonho, realidade ou pesadelo.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
jsayad@attglobal.net


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