São Paulo, segunda-feira, 13 de setembro de 2004

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Superávit pró-Amazônia

ENNIO CANDOTTI


O colapso da floresta amazônica não interessa aos pulmões de ninguém -nossos ou do FMI
Examina-se a possibilidade de excluir do cálculo do superávit primário investimentos em infra-estrutura. Observa-se que, para isso, eles devem ser produtivos, isto é, economicamente sustentáveis.
A Amazônia precisa de investimentos em infra-estrutura de ciência e tecnologia. Ela é um imenso laboratório científico que, criteriosamente explorado, poderá render, nos próximos 30 anos, R$ 900 bilhões -segundo estimativa da indústria farmacêutica norte-americana.
Europeus, japoneses e americanos investem hoje grandes quantias em pesquisa científica sobre a biodiversidade das florestas tropicais úmidas. A França, que está construindo um importante centro de pesquisas na Guiana Francesa, investe R$ 600 milhões nesse projeto.
Resultados recentes de estudo sobre os impactos climáticos da floresta amazônica, conduzido pela Nasa, revelam que estes alcançam vastas regiões do planeta. De seu bom "funcionamento" depende a qualidade do ar que se respira aqui e no sul dos Estados Unidos.
Um terço das reservas de água doce do planeta encontra-se na região amazônica. Estudos de prospecção da economia mundial indicam que essa água terá, nas próximas décadas, papel estratégico na geopolítica global.
No entanto o quadro dos investimentos em C&T (ciência e tecnologia) na região é desolador.
Os nossos principais institutos de pesquisa, o Inpa (Instituto de Pesquisas da Amazônia), em Manaus, e o Museu Goeldi, em Belém, recebem juntos menos de R$ 20 milhões para custear suas atividades de pesquisa. As universidades federais dos sete Estados da região amazônica, menos ainda. São 1.200 os naturalistas, químicos, geofísicos, antropólogos e sanitaristas com doutorado que trabalham nessas instituições.
Investe-se na Amazônia menos de 1% do orçamento de C&T da União. Deveríamos multiplicar esse valor por dez em quatro anos. Seria uma meta ao nosso alcance. Razoável.
Faltam recursos e quadros técnicos para realizar e implementar o zoneamento econômico ecológico do Estado do Pará. Definir onde plantar, onde proteger e onde recuperar. Primeiro passo para estabelecer políticas capazes de conter o devastador avanço do desflorestamento no sul desse Estado (e no norte de Mato Grosso). Faltam também quadros técnicos para dar estabilidade e agregar conhecimento próprio aos empreendimentos da Zona Franca de Manaus, crescentes, mas ainda dependentes dos favores de uma legislação especial de incentivos fiscais.
Os recursos recolhidos pela Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus) das empresas lá instaladas para investimentos em C&T encontram-se contingenciados -R$ 100 milhões bloqueados para o superávit primário.
Lotear áreas de floresta, de propriedade da União, para exploração "sustentável" em parceria público-privada, como prevê recente projeto de lei preparado pelo Ministério do Meio Ambiente, não é solução razoável nem a curto prazo. Experiências semelhantes realizadas em outros países não funcionaram.
Permitir que a expansão da área agrícola (plantio de soja e criação de gado) ocorra à custa da destruição da floresta é crime (a Constituição e as leis ambientais protegem a floresta amazônica em pé). Tolerar que o financiamento dessa devastação ocorra com recursos dos créditos rurais é cumplicidade. Todos os anos, 25.000 km2 da floresta são destruídos para a extração de madeira, criação de gado (duas cabeças por hectare!) e plantação soja.
O quadro, portanto, exige definir e implementar um programa de C&T de médio e longo prazo, cujo início não pode tardar.
Três ações se fazem urgentes:
1) reunir produtores, governo e comunidade científica a fim de negociar soluções alternativas para a expansão da fronteira agrícola, que evitem a devastação da floresta primária -a Embrapa, que conseguiu nos últimos dez anos multiplicar por três a produtividade da soja, sugere, por exemplo, que se explorem áreas já desmatadas e não utilizadas, oferecendo tecnologias que desenvolveu para esse fim;
2) subtrair do superávit primário investimentos em infra-estrutura em C&T e meio ambiente na Amazônia. O que poderia canalizar para a região investimentos da ordem de R$ 2 bilhões nos próximos cinco ou seis anos;
3) iniciar, o quanto antes, intenso programa de formação e fixação de quadros técnicos de alta especialização na região, utilizando para isso recursos contingenciados dos fundos setoriais: R$ 900 milhões nos próximos cinco anos; R$ 15 milhões por mês. ("Guindastes para a Amazônia", Folha, 20/5/ 04, pág. A3).
Afinal, a qualidade do ar que respiramos aqui e pelo mundo afora vale mais do que os recursos necessários para sustentar sua produção. O colapso da floresta amazônica não interessa aos pulmões de ninguém -nossos ou do FMI. Ele e o superávit saberão entender.
Ennio Candotti, 62, professor do Departamento de Física da Universidade Federal do Espírito Santo, é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

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