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Fora do lugar
Há quem se imagine de esquerda defendendo a reestatização, enquanto questões básicas continuam esquecidas
NOS ANTIGOS manuais
marxistas, era comum
insistir-se no descompasso entre a base
econômica da sociedade e os fenômenos de sua superestrutura
ideológica. Transformações profundas na vida material podem
não ser percebidas de imediato;
as mentalidades têm inércias
que a economia desconhece.
É assim que alguns assuntos
parecem sobreviver no debate
brasileiro pairando numa espécie de limbo retórico, sem manter quaisquer conexões com o solo econômico e político que lhes
poderia dar sustentação.
Promovido no mês passado
por iniciativa da CUT, do MST e
de setores da Igreja Católica, o
plebiscito a respeito da reestatização da Vale do Rio Doce constitui, sem dúvida, exemplo de
uma campanha ideológica fora
do tempo e do lugar.
Uma reportagem comparativa,
publicada na Folha da quarta-feira passada, revelou forte decréscimo das adesões a movimentos desse tipo. Em 2002, um
plebiscito orientado contra a
criação da Alca, teve 10,1 milhões
de votantes. No caso da reestatização da Vale do Rio Doce, foram 3,7 milhões os que se envolveram na campanha. É sempre
duvidoso, vale lembrar, o método de coleta de assinaturas nessas consultas.
Os tempos mudaram, certamente, mesmo entre os que se
recusam a admitir o fato. Não escapa a ninguém a circunstância
de que, em plebiscitos anteriores, o PT estava na oposição. Mas
se havia ainda algo de laico no
impulso político de contestar as
opções do governo Fernando
Henrique Cardoso, o que hoje
predomina é alguma espécie de
fervor religioso, venha ou não de
militantes da Igreja Católica.
Enquanto o governo Lula celebra a transferência de estradas
federais para o controle de empresas particulares, a bandeira
de um hipotético retorno da segunda maior mineradora do
mundo às mãos do Estado brasileiro é ainda objeto de mobilizações no próprio PT.
Contrariando a cúpula do partido -que não pode ser acusada
de indiferença aos aspectos mais
terrenos da vida política-, o 3º
Congresso do PT aprovou, em
agosto, a tese da reestatização.
Seja por modismo bolivariano,
seja por nostalgia varguista, a
pauta consome energias e preocupações que certamente seriam
mais bem aproveitadas num
sem-número de questões ainda
por debater.
Qualquer agrupamento político, qualquer centro de discussão
ideológica, qualquer organização de base que se disponha,
mesmo vagamente, a divergir do
famigerado "neoliberalismo" teria, por certo, propostas urgentes a discutir. Como assegurar o
controle das comunidades sobre
a prestação de serviços públicos
essenciais? Por que o ensino gratuito é pior do que o ensino pago? Por que tantos jovens são assassinados na periferia?
Há quem se mobilize, entretanto, para reestatizar a Vale do
Rio Doce. Há quem se mobilize,
conforme o dia, para defender
Renan Calheiros ou distribuir
cargos em troca da CPMF. E há
quem pense que é "de esquerda"
quando faz isso.
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