São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ciência, tecnologia e política industrial

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Jorge Luiz Borges, em um de seus frequentes e geniais paroxismos delirantes ("El Imortal", do "Aleph"), adverte que toda idéia nova não é senão uma restauração de algo já imaginado no passado e descartado que, inesperadamente, é ressuscitado, talvez devido a misteriosos mecanismos inconscientes. Esse mesmo conceito, o de que não há verdadeiras inovações, também não é novo, pois, de acordo com o próprio Borges, teria sido precedido por idéias similares de Salomão, Platão e Bacon.
Não faz 20 anos que se conseguiu enterrar um preceito segundo o qual pesquisa fundamental e desenvolvimento tecnológico seriam irremediavelmente incompatíveis. E, como consequência desse dogma, era proposta uma rígida separação entre instituições que se ocupariam da pesquisa fundamental, principalmente as universidades, de um lado, e de outro os institutos de tecnologia e o setor empresarial, que se encarregariam de pesquisas aplicadas e do desenvolvimento tecnológico.
Se universidades fossem circunscritas a pesquisas básicas, acontecimentos de importância econômica maiúscula como o surgimento do vale do Silício, com suas 10 mil empresas, em torno de Stanford, e a "rota 128", nas vizinhanças do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), ou ainda o complexo industrial em Grenoble possivelmente não teriam ocorrido. É claro que nem todas essas empresas nasceram de inovações originárias da universidade. Nem vieram seus proprietários e executivos exclusivamente dos quadros ou das salas de aulas de Stanford e do MIT.
Mas a função da universidade é criar uma atmosfera, um meio ambiente germinal que facilite trocas intelectuais informais entre as próprias empresas, entre estas e instituições de pesquisas, o que é essencial para a proliferação de inovações. E é por esse mesmo motivo que hoje se concretiza como inelutável a criação de tecnopólos e incubadoras de empresas de base tecnológica. Na base desse imperativo está uma crescente demanda por inovação que vem reduzindo inexoravelmente o tempo de obsolescência de tecnologias específicas.
Até, digamos, a década de 50, a produção industrial se baseava em tecnologias caracterizadas por tempos de vida medidos em décadas. Hoje, esse tempo se mede em anos e, em alguns setores, tais como telecomunicações, aeronáutica, informática, optoeletrônica etc., em meses. Nessas áreas, empresas que não lançam novos produtos a cada ano não se mantêm competitivas.


A falência da capacidade de produzir inovação no Brasil se deve em grande parte ao modelo adotado aqui


Como consequência, a cadeia clássica "descoberta científica-inovação-desenvolvimento-produção-comercialização" teve seus intervalos de tempo reduzidos drasticamente. Hoje, ocasionalmente inicia-se o processo de comercialização de um novo produto quando a produção ainda não se iniciou, e são elaborados os últimos estágios do desenvolvimento já na linha de produção. Da mesma maneira, a descoberta ainda não está inteiramente elucidada e o desenvolvimento já se iniciou.
Recentemente, um levantamento realizado por iniciativa do Congresso norte-americano revelou que um terço do PIB daquele país se origina em atividades que derivam diretamente da mecânica quântica, disciplina da física que foi concebida há pouco mais de sete décadas e que ainda não foi bem assimilada pelos próprios físicos. Esses argumentos mostram que progredimos de maneira inequívoca e irreversível em direção a processos industriais que se valem de uma crescente aproximação entre ciência, tecnologia e produção.
A ridícula proposta que anda por aí de cisão entre atividades de pesquisas básicas, a que se restringiriam as universidades, e de desenvolvimento tecnológico, que seriam confiadas a institutos específicos e empresas, é um retrocesso.
Todavia dessa visão uma parcela é absolutamente correta, a saber, a de que o sistema produtivo não pode prescindir de atividades próprias em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. E, para criar essa cultura, ou pelo menos essa práxis, governos de países considerados economicamente desenvolvidos custearam, desde o fim da Segunda Grande Guerra, pesquisas em suas empresas nacionais, o que hoje, por incrível que pareça, ainda é praticamente proibido, por legislações obsoletas, no Brasil.
Nos EUA o aporte financeiro do governo para pesquisas na indústria chegou a ser de quase 50% dos custos. Hoje está em cerca de 15% essa participação. Esse valor não inclui, porém, encomendas de produtos de alta tecnologia que têm como objetivo fundamental o desenvolvimento tecnológico. Outros países desenvolvidos também contribuem com recursos públicos para pesquisas na indústria, embora com percentuais menores. Mas apóiam de maneiras diversas o setor empresarial, valendo-se de múltiplos mecanismos.
Na década de 70, por exemplo, época do maior impulso econômico do Japão, o Miti, o todo-poderoso Ministério de Indústria e Comércio Exterior daquele país, já dispunha de 17 institutos de pesquisas aplicadas que operavam em próxima associação com os diversos setores industriais em projetos de interesse de empresas específicas.
Podemos agora anunciar o nosso primeiro postulado para um adequado desenvolvimento tecnológico, pressuposto inelutável de uma agregação de valor à produção nacional: É fundamental incentivar os mecanismos já existentes para fundir, integrar as etapas que constituem a cadeia entre as produções de conhecimento e as de bens. No Brasil, o elo mais fraco é aquele entre pesquisa aplicada e produção, que não será sanado sem um continuado esforço para implantar unidades permanentes de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nas empresas nacionais.
A falência inquestionável da capacidade de produzir inovação no Brasil se deve em grande parte ao modelo adotado aqui, no qual se atribui à universidade e a institutos de pesquisa a missão de fornecer tecnologias para o setor produtivo nacional, que, justamente por não fazer pesquisa, não está capacitado a organizar e exprimir sua demanda.


Ainda prevalece no Brasil o preconceito de que a empresa privada não pode ser apoiada por "dinheiro público"


O segundo conceito básico para uma saudável política científica, tecnológica e industrial é o de que progressivamente desaparecerá qualquer distinção entre mercado interno e externo. O produto que não for competitivo para exportação perderá progressivamente o espaço no mercado interno, pois os custos alfandegários, de transporte e de distribuição tendem a se tornar pouco significativos. Também já podemos deixar de considerar como vantagem competitiva a mão-de-obra barata brasileira, uma vez que China, Índia, Coréia etc. diversificam aceleradamente suas produções. A China já se constitui em uma ameaça até para o vale do Silício.
Não resta, então, outro caminho que não um obstinado aumento de produtividade, pois não há mais como proteger unilateralmente o mercado interno, a menos que voltemos a uma economia fechada. É bom também não esquecermos que será crescentemente identificado o processo de agregação de valor a desenvolvimento tecnológico.
Não restam dúvidas de que gestões diplomáticas ou meramente comerciais como as que vem realizando a atual administração do Ministério da Indústria, Comércio e Desenvolvimento podem ajudar. Mas o sucesso dessas iniciativas será extemporânea e fugaz, se o produto não for competitivo. A atuação fundamental do Estado deve se concentrar na própria indústria, e não no mercado, externo ou interno.
Vimos, ainda neste ano, praticamente todas as agências federais exibirem em seus editais para financiamento à pesquisa aplicada e desenvolvimento determinações impeditivas da participação de empresas (a que chamam eufemisticamente de "entidades com fins lucrativos") em desenvolvimento tecnológico. Por incrível que pareça, ainda prevalece no Brasil o preconceito fundamentalista de que a empresa privada não pode ser apoiada por "dinheiro público" (a não ser os bancos). Não se percebe que um desenvolvimento tecnológico que leve a aumento de produtividade e agregação de valor é, antes de mais nada, um benefício para a sociedade, e não para o "amaldiçoado" empresário.
Chegamos agora ao terceiro e último preceito para a elaboração de uma política industrial que denominaremos "darwinismo empresarial": É o imperativo de concentração de recursos nos setores que se caracterizam pela capacidade de sobrevivência, de competição.
Ou seja, é preciso aceitar a verdade biológica do capitalismo ou desistir da participação em uma economia globalizada. O que será absolutamente fatal é ficar no meio do caminho. O Estado deve, portanto, identificar os setores, as indústrias, as instituições de pesquisa que estão aptas a competir internacionalmente e privilegiá-las com todos os seus meios. E é bom também reavaliar essa crença ingênua de que podemos elaborar um modelo de desenvolvimento baseado na pequena e média empresas. A história mostra que isso não é possível. Embora empresas de pequeno porte sejam necessárias, imprescindíveis mesmo, não houve até hoje, em nenhum país, surtos de desenvolvimento que não se estribassem em grandes corporações.
É claro que, identificados os setores estratégicos ou de interesse social, o Estado deveria também se concentrar nessas áreas, embora sejam elas deficientes. Um caso típico é o da produção de fármacos, os princípios ativos dos medicamentos. Na década de 80, a importação de fármacos e medicamentos não passou de US$ 500 milhões por ano, apesar da prática de superfaturamento. Hoje está em US$ 3 bilhões. A perda do pouco conhecimento que havia sobre custos de produção é o principal fator desse aumento de 500%. É, pois, necessário voltar a apoiar a produção de fármacos.
Também no caso de produções estratégicas a concentração de esforços é essencial. É preciso ter a coragem de debelar definitivamente esse pernicioso vício brasileiro da distribuição "democrática", equânime de recursos públicos.
Vale aqui um exemplo dessa tenebrosa prática. O Ministério da Ciência e Tecnologia identificou, embora tardiamente, um novo setor científico, tecnológico e industrial de grande importância econômica, a nanotecnologia. Já foram criados três centros, núcleos, entidades etc., além de uma rede nacional. Simultaneamente, criou-se mais um Instituto da Amazônia e um do Semi-Árido (felizmente os gaúchos dormiram no ponto, senão haveria também um Instituto dos Pampas). Os recursos, insuficientes para uma só dessas entidades, foram distribuídos igualitariamente. Essa prática, acovardada e demagógica, é a garantia de absoluto fracasso de todas as iniciativas. É preciso ter coragem para estabelecer prioridades, elaborar uma política industrial que decorra de uma política social e uma política científica e tecnológica que seja consequência dessa política industrial.
A ciência é a base da qual emana a tecnologia, e esta é o instrumento que rege a produção de bens, que, por sua vez, gera a riqueza da nação e, consequentemente, a melhoria da qualidade de vida do cidadão.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.


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