São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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IGOR GIELOW

O primeiro e último

BRASÍLIA - No Museu de História Natural da Mongólia, em Ulan Bator, há uma sala que lembra o ambiente kitsch daquelas feiras de ciências em escola do interior. Nela, são guardadas relíquias de Zhugderdemidiyn Gurragcha, o primeiro e até aqui único cosmonauta do seu país.
Desculpem-me a terminologia, mas sou do tempo em que quem voava em nave russa era cosmonauta. Enfim, lá na saleta estão o traje espacial se desmanchando, tubos de alimentação enferrujados, pastilhas disso e daquilo, fotos amarelecidas.
Gurragcha voou pelo programa Intercosmos, no qual a União Soviética enviava aliados para passear no espaço em prol da propaganda comunista. O ganho era simbólico, não exatamente científico.
O cosmonauta viajou em 1981 numa Soyuz. Em um outro modelo da nave voará, salvo imprevistos, o brasileiro Marcos Pontes em março deste ano. O mundo mudou e, no lugar da retórica ideológica e da União Soviética, entraram os dólares e a Rússia do vale-tudo. O Brasil vai desembolsar cerca de US$ 10 milhões para ter seu homem no espaço.
Foi a saída possível, dado o vexatório desengajamento dos programas da Estação Espacial Internacional e a fatalidade -Pontes foi treinado para voar no ônibus espacial americano, mas o desastre do Columbia em 2003 o tirou da fila de embarque.
O timing foi favorável a Lula. Nada como herói nacional em ano de eleição. É previsível a onda ufanista, alimentada por mídia desinformada.
Logicamente, isso não embaça o brilho e a coragem de Pontes, preparado por anos para um dos trabalhos mais arriscados conhecidos. Mas o fato é que os tais "experimentos de instituições brasileiras" não farão a ciência local dar um salto, achar curas milagrosas. O avanço é simbólico, defensável como tal e só.
Pontes afirma que não quer ser "o primeiro e último". Mas a verdade é que, dado o histórico brasileiro em ciência, ele corre sério risco de ladear Gurragcha no panteão de heróis ocasionais em países improváveis.


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