São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O Brasil lugnagiano
MARCO AURÉLIO DE MELLO
É de fato peculiar a situação dos juízes brasileiros, em cujo rol de prerrogativas funcionais está a vitaliciedade, garantia que, por aqui, não significa "enquanto viver" ou enquanto permanecer capaz e produtivo, diferentemente do que acontece, por exemplo, na Suprema Corte dos EUA, onde os magistrados ficam no cargo pelo tempo em que se acharem em condições, cumprindo àquele tribunal decidir sobre a interdição de alguém por incapacidade física. No Brasil, talvez tudo se deva ao peso atribuído ao cargo. Julgar realmente é tarefa das mais complexas, a envolver, sempre, a equação de inúmeros valores. Quem sabe esse aspecto tenha induzido o legislador a imaginar que tão árdua missão incapacite, com o correr dos dias, os magistrados, embotando-lhes o entendimento, por isso ficando caducos mais depressa. O ofício de julgar mostrar-se-ia dos mais cruéis, desfavorecendo quem a ele ousou se dedicar. Já pensou se essa desumana lógica houvesse cerceado a obra de Leonardo da Vinci, Machado de Assis, Handel, Villa-Lobos, Monet, Matisse ou, para ser bem contemporâneo, a esplêndida carreira da nossa Fernanda Montenegro? Na magistratura, o fardo dos anos como que se revela acachapante, diminuindo paulatinamente quem enverga a toga, ao reverso do que ocorre nas grandes empresas, cujos executivos são premiados com títulos pomposos de "masters" ou "seniors", com o que angariam ainda mais respeito e prestígio. Nos poderosos conglomerados econômicos, a experiência é um bem valioso a ser generosamente recompensado. No serviço público brasileiro, dá-se o inverso: de um modo geral, investe-se na formação dos servidores como que os preparando para gerar os melhores frutos no âmbito privado, de vez que, no vértice da carreira, são coagidos a se afastarem, pouco interessando o quanto poderiam realizar em prol do serviço público, que tanto ainda deixa a desejar. Num contra-senso, as maiores autoridades administrativas do país não cansam de apontar o rombo da Previdência como uma das principais causas do déficit orçamentário nacional. Quem há de compreender? Em "Tempo de Memória", Norberto Bobbio, influente cientista político, ao discorrer sobre o efeito do tempo, testemunha que sua maior dificuldade, aos 80 anos, residia em conciliar a lucidez dos pensamentos, a agilidade de raciocínio com a lentidão dos movimentos própria aos mais idosos. As ordens emanadas de uma cabeça desenvolta eram processadas de maneira pouco destra pelo corpo cansado. Convenhamos: tal dificuldade desabilita o genial pensador italiano? De forma nenhuma. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a idade cronológica não é o melhor parâmetro para delimitar a fronteira da velhice, mostrando-se mais adequado recorrer ao conceito de idade funcional, medida de acordo com a autonomia do indivíduo, ou seja, à luz da aptidão para realizar tarefas rotineiras, como fazer compras, cuidar da higiene pessoal, ir sozinho ao local de trabalho. Se assim é, necessariamente devem ser revistos preceitos constitucionais que arbitrariamente imprimem um limite não-biológico à capacidade produtiva de um ser humano, que restringem o exercício livre do universal direito ao trabalho. A aposentadoria há de ser uma recompensa, nunca um castigo para quem, pelo tanto que se dedicou à causa pública, merece ao menos ser considerado digno e apto a concluir por si só já ter cumprido a própria jornada. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, 55, é presidente do Supremo Tribunal Federal. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak: A criação da Afec Índice |
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