São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Liberdade de escolha

DENIS LERRER ROSENFIELD


Há algo muito inquietante quando o poder público procura justificar e legitimar a ação do Estado no foro íntimo de cada um

EM MEU seminário na universidade sobre a liberdade de escolha, foi-me trazido o seguinte relato, altamente revelador da fase que o Brasil vem atravessando de imposição estatal do politicamente correto. O contexto foi o da proibição de fumar em lugares fechados, independentemente ou não de serem eles separados dos de não-fumantes, num flagrante desrespeito à opção individual de cada um.
No centro de Porto Alegre (RS), um bar reagiu à proibição com uma placa: "Proibida a entrada de não-fumantes". Assim fazendo, exerceu sua liberdade de escolha, deixando suficientemente claro para todos qual a clientela visada.
Não se pode dizer que ele não tenha advertido os não-fumantes de que se trata de um local especial para fumantes. Um não-fumante não pode se dizer enganado ao entrar num local desse tipo, nem o poder público deveria se imiscuir numa escolha conscientemente assumida pelo dono desse estabelecimento.
Poderia o poder público exigir a exposição de advertências legais referentes aos problemas do ato de fumar, mas não interferir naquilo que é uma opção individual. Nada impediria que o bar ao lado ostentasse uma outra placa: "Proibido para fumantes". Nesse caso, o cidadão poderia, diante dessa alternativa, escolher a opção que mais lhe conviesse, não necessitando do Estado para monitorar as suas escolhas.
Observe-se que o indivíduo poderia perfeitamente escolher entre entrar num bar ou no outro, segundo a ponderação que fizer sobre o que é melhor para o seu gosto, a sua saúde e os seus hábitos. Devemos considerar que as pessoas são suficientemente pensantes para exercer a sua capacidade de escolha.
Nada impediria tampouco que não entrasse em nenhum bar, dedicando-se a fazer qualquer outra coisa.
O que aconteceu? A Prefeitura de Porto Alegre autuou o bar em questão por infringir a lei que proíbe o fumo em lugares fechados. A intervenção foi legal, porém oriunda de uma nova legalidade, que procura justificar e legitimar a ação do Estado no foro íntimo de cada um, esse lugar que deveria ser sagrado em que deliberações são tomadas.
Há algo muito inquietante quando o poder público se atribui essa posição, após campanhas maciças de convencimento da opinião pública, como se estivesse tratando da saúde de cada um. Será que todos os cidadãos são tão incapazes de decidir por si mesmos, necessitando que o Estado tome o seu lugar? De onde provém essa onipotência, senão da sua falsa capacidade de pretender decidir no lugar de cada um?
Tomemos um outro exemplo. Normalmente, a noção de bar vem associada a um lugar em que pessoas tomam bebidas, alcoólicas ou não, comendo petiscos e sanduíches. Consideremos, agora, a possibilidade de que um determinado estabelecimento colocasse a seguinte placa: "Proibida a entrada de não-vodqueiros". Sua carta de bebidas estaria constituída somente de garrafas de vodca, das mais distintas proveniências, tanto nacional quanto internacional. Os amantes dessa bebida poderiam usufruir dos seus mais distintos gostos, em comparações etílicas das mais diferentes.
Em princípio, nada haveria a obstar contra a existência desse tipo de bar. Poderíamos também incluir ao lado um outro bar ou uma série bares com distintas placas: "Proibida a entrada de não-cachaceiros", "Proibida a entrada de não-bebedores de vinhos" e assim por diante.
Em princípio, nada haveria a opor a tal situação, embora devêssemos considerar a possibilidade de que um ministro ou uma autoridade municipal, no afã de proibir, promulgasse uma nova lei, interditando tais estabelecimentos. Em vez do lema anarquista de "proibido proibir", estamos vivendo, de fato, uma quadra assaz curiosa, a do "proibido não proibir".
Por enquanto, não há nenhuma proibição relativa ao anúncio de tais tipos de bar. Digo "por enquanto" pois essa onda avassaladora do politicamente correto pode produzir uma nova situação, em que, por exemplo, bebidas de um maior teor alcoólico não mais possam ser vendidas.
Aliás, tudo se pode esperar de políticos e ministros que confundem saúde com aumento de impostos e com uma maior presença estatal na vida de cada um. São os novos sanguessugas, sugam o bolso dos contribuintes e dizem trabalhar para o seu bem. Perderam a CPMF e buscam agora ressurgir com a bandeira do politicamente correto.


DENIS LERRER ROSENFIELD , 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Reflexões sobre o Direito à Propriedade", entre outros livros.

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