|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
O Ministério Público deve conduzir investigações?
NÃO
Constituição acima de tudo
ARNALDO MALHEIROS FILHO
Respondo não porque não sou a
Assembléia Constituinte. É que,
em matéria regulada pela Constituição,
perguntas do tipo "isso é bom para o
país?", "é melhor que seja assim?", "não
seria um mal menor?", "isso deve ser
feito?" não podem ser respondidas de
acordo com a opinião pessoal de quem
é indagado, mas sim nos termos postos
pela Lei Maior. Esta, quando inobservada ou atropelada por boas intenções
(das quais não é o reino dos céus que está cheio...), leva a sociedade ao caos.
Perguntas como essas são feitas com
freqüência, especialmente em momentos de crise ou diante de problemas graves e sem solução aparente. Há 15 anos,
um presidente que se preparava para
assumir reuniu uma plêiade de economistas bem-intencionados e indagou:
"Meu governo deve confiscar a poupança do público?". A economia, na ocasião, era um descalabro; a inflação tão
alta que as coisas dobravam de preço
em pouco mais de um mês. Pois bem, os
economistas bem-intencionados, considerando a gravidade da crise e esquecendo que o Brasil tinha Constituição,
responderam em uníssono: "Sim!". O
resto da história todos conhecemos.
A partir daí era de esperar que os brasileiros tivessem percebido que o tamanho da crise não é desculpa para que se
rasgue a Constituição, pois, se assim for,
teremos crise ainda maior.
Por isso, com todo o respeito às boas
intenções dos que acham que realmente
seria bom para o país que o Ministério
Público conduzisse investigações, acho
que a pergunta correta a fazer, para que
não fiquemos restritos aos palpites dos
curiosos, é "a Constituição permite que
o Ministério Público conduza investigações?".
Essa, e somente essa, é a questão que o
Supremo Tribunal Federal deverá responder, pois não cabe a seus ministros
dizer o que lhes parece melhor para o
país, mas apenas estabelecer o que a
Constituição permite ou não. Nesse
sentido é claramente abusiva a pressão
que se tenta fazer sobre o órgão máximo
do Judiciário (até com o uso indevido
de recursos públicos), à base de que as
investigações do MP têm contribuído
para o esclarecimento de crimes e de
que seria bom que elas continuassem. O
Supremo, repita-se, não vai julgar se as
investigações são boas ou ruins, se têm
ou não contribuído para a ordem pública, mas somente se são ou não admitidas pela Constituição.
E a resposta, conforme o entendimento já antecipado por cinco dos 11 ministros, é negativa.
A Constituição, tão justamente criticada por seu excesso de minúcias, trata
da Polícia Judiciária como a instituição
competente para a investigação criminal. Ainda que carregada de viés incriminatório, a verdade é que a polícia não
é o mesmo órgão acusador, o que a deixa mais distante do interesse de uma
das partes e, pelo menos em termos
ideais, mais próxima da verdade. Suas
investigações são feitas num procedimento chamado inquérito policial, regulamentado por uma lei, que é o Código do Processo Penal.
A regulamentação do inquérito, que
exige que suas peças fiquem nos autos,
sejam elas favoráveis ao interesse acusatório ou defensivo, dá condições para
que seja avaliada a legalidade da atuação policial -cujo controle externo é
atribuição constitucional do MP- e garantidos os direitos individuais. Já as investigações dos promotores e procuradores se dão à margem de qualquer normatização, sem regra nenhuma, dando
espaço ao arbítrio e à sonegação das
provas que não convierem à acusação.
A ordem constitucional vigente, contudo, reserva ampla gama de atuação ao
MP nas investigações criminais, tão ampla que fica difícil entender a verdadeira
razão de tanto empenho para as conduzir diretamente. O MP pode requisitar
(leia-se "determinar") a abertura de inquérito policial; pode indicar as diligências que quer ver realizadas; pode
acompanhar, com a presença de seu representante, a realização dessas diligências; exerce o controle externo de toda a
atividade policial. O que lhe falta?
Com tão vasta competência, bem se vê
que, se a vontade do MP é investigar,
ferramentas não lhe faltam, desde que o
faça dentro da legalidade. Porém, se o
que lhe interessa é exibir poder e exercê-lo arbitrariamente, à margem de qualquer regramento, como vem ocorrendo, é preciso mais.
E aí vem o argumento de que "quem
pode o mais pode o menos", ou seja, se
pode o MP acusar em juízo, pode também investigar. Fosse assim e o juiz, por
poder o mais, que é julgar, poderia também acusar, e acharíamos muito normal alguém ser julgado por seu próprio
acusador, como nos tempos da Inquisição, aquela que se dizia santa. Lá um
mesmo clérigo investigava, torturava,
acusava e julgava -e ninguém diga
que, para os objetivos visados, deixaram de ser excelentes os resultados...
Se queremos viver num Estado democrático de Direito sob o império da
Constituição, o Ministério Público não
deve conduzir investigações criminais.
Arnaldo Malheiros Filho, 54, advogado criminal, é professor de direito penal econômico na
FGV-SP e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Boris Fausto: O risco de um retrocesso Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|