São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Severo Gomes, legado vivo

PAULO SÉRGIO PINHEIRO


Nesses anos todos, não se passou nenhum dia sem que as idéias e a vida de Severo não nos interpelassem

 Para Bila e Heloisa Gomes

Faz dez anos. Madrugada de 12 de outubro de 1992. O helicóptero que trazia, de Angra dos Reis, Severo e Maria Henriqueta Gomes (com dr. Ulysses e d. Mora) não chegara. No final da manhã, um pesado sentimento de perda já se havia instalado em nós. "Somente porque eu morri não é desculpa para vocês não conversarem comigo", deixou escrito um grande pregador inglês.
Nesses anos todos, não se passou nenhum dia sem que as idéias e a vida de Severo não nos interpelassem. Presentes sempre sua graça (troça muitas vezes) e humor. Sem se levar muito a sério, discreto, retirado. Nos comícios das diretas, em que ajudara e apoiara Franco Montoro desde o primeiro momento, só a muito custo era arrastado para a frente do palanque. Qualquer que fosse a função, sempre alta, que ocupasse, jamais mudou de estilo.
Sua insistência em defender a capacidade autônoma do Brasil na comunidade internacional, simplistamente reduzida por alguns a um ferrenho nacionalismo, cada vez se torna mais atual. Neste momento em que há um perigoso retrocesso ao unilateralismo, a pregação de Severo pelo multilateralismo se torna mais relevante. Nosso lugar está junto, como ele preconizava, dos "países baleias" (como dizia seu amigo Ignacy Sachs), como Índia, China, Rússia. Era um defensor persistente do diálogo Sul-Sul.
Hoje, depois das revelações sobre o racismo estrutural e da grande participação brasileira na Conferência da ONU contra o Racismo, em Durban, no ano passado, a luta pelos direitos dos afrodescendentes se tornou realidade. Pois foi Severo que organizou, pela primeira vez na história do Senado brasileiro, um seminário sobre a comunidade negra, lá levando nosso saudoso Milton Santos.
Severo, em toda iniciativa ligada à promoção dos direitos humanos, dizia: "Não vão lá esquecer o Fernando Henrique". Ficaria encantado de saber que a política afirmativa se tornou, desde maio de 2002, uma diretriz presidencial de seu amigo.
Nos anos 70, lá iam no mesmo carro Teotônio Vilela, Fernando Henrique e Severo dar solidariedade aos operários em greve de São Bernardo. A viagem era um encantamento; Teotônio contando que seu irmão dom Avelar Brandão, cardeal primaz do Brasil, ralhava com as irmãs beatas que torciam o nariz para Octávio Brandão, fundador do PCB: "O verdadeiro cristão da família, fiquem vocês sabendo, é o primo Octávio, que dedicou sua vida inteira aos sem-poder".
O belo apartamento da rua Tabapuã, com a generosidade e a curiosidade de Maria Henriqueta, com as paredes com Fontana, Leger, Morandi, foi durante os anos 80 o lugar de negociações com os empresários, Lula e seus companheiros. Severo adorava promover conversas e festas em que um arco larguíssimo de amigos participavam. Visitantes de Julius Neyrere ao físico Ernesto Sábato, em que se entremeava homenagem distendida e discussão. Severo era erudito sem ser pedante, recitava canções de amigo, poesias de dom Diniz, de Borges, dominava a história da Inquisição e, de repente, citava Marsílio de Pádua e o "Defensor Pacis", sem ar pedante.
Para ele, os povos indígenas detinham o código da nossa civilização: éramos um país privilegiado por ter vivendo entre nós os descendentes de nossos pais fundadores. O verdadeiro memorial de Severo é o parque ianomâmi fundado por lei de sua iniciativa. Sempre que podia participar de uma cerimônia com seus amigos desse grande povo, lá estava. Há uma linda foto dele com seu companheiro indefectível de viagem, o pintor Glauco Pinto de Moraes, numa aldeia ianomâmi, e outra do senador, sem camisa, na aldeia.
Severo era o ímã que unia uma infinidade de opiniões e trajetórias. Antonio Cândido, seu antigo mestre, que ele tratava com discreta reverência; Celso Furtado, cuja grande dignidade em sua careira ele admirava. Dois amigos inseparáveis de toda a vida: Fernando Millan (hoje na companhia de Severo) e Alberto Muylaert, além de Cláudio Abramo. Tinha o maior orgulho da sua coluna regular na Folha, que deu origem a ensaios inspirados e flashes da memória com ares de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (quando falava de suas casas, por exemplo).
De ministro do governo Geisel, em que discretamente transmitia denúncias de presos e torturados (entre os quais seus amigos pesquisadores do Cebrap), a se tornar referência respeitada da oposição à ditadura foi sua translação.
Essa capacidade de tolerância pelas pessoas talvez seja um dos seus legados na Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, que fundou com Teotônio. Juntou um espectro de personalidades com posições partidárias e percursos diversificados, de Marilena Chaui a José Gregori, passando por Maria Ignês Bierrenbach, Maria Helena Gregori, Hélio Bicudo, Fernando Gabeira, Eduardo Suplicy, Margarida Genevois, Emir Sader, João Baptista Breda, padre Agostinho Duarte de Oliveira, esse defensor incansável dos direitos dos jovens. Uma "armata brancaleone", inconvencional e desabusada, que vai comemorar no ano que vem 20 anos.
A perda de Severo Gomes foi prematura e devastadora, mas seu legado vivo nos reanima. Do seu arquivo e biblioteca, doados por suas filhas Elisa e Maria Augusta para o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, está sendo reconstituído, dedicadamente, pela pesquisadora Ana Beatriz Nader, seu luminoso, contraditório e admirável trajeto.
Dez anos depois, ainda é preciso dizer muito obrigado, Severo, não somente pelo que você fez, mas também por tudo o que você foi.


Paulo Sérgio Pinheiro, 58, coordenador licenciado do Núcleo de Estudos da Violência da USP e professor titular de ciência política da universidade, é secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo federal.


Texto Anterior: Frases


Próximo Texto: Mário Amato: Um cidadão preocupado


Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.