São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Duas histórias nucleares

Na síntese de Raymond Aron, os Estados orientam-se, no sistema internacional, por uma tríade estratégica: a segurança, a potência e a glória. O Irã interpreta a segurança como a capacidade de proteger-se de um Iraque hostil, a potência como a capacidade de dissuadir Israel de lançar um ataque nuclear preventivo e a glória como a difusão das suas idéias no Oriente Médio e no mundo muçulmano em geral.
Há duas semanas, o Irã anunciou que seu míssil Shahab-3 adquiriu alcance de 2.000 quilômetros, mais do que suficiente para colocar Israel no seu raio operacional. Ao mesmo tempo, o governo iraniano rompeu um acordo informal de suspensão de qualquer atividade relacionada ao enriquecimento de urânio. Outros indícios reforçam as suspeitas de que o programa nuclear do país tenha sido redirecionado para a produção de bombas atômicas.
O governo do Irã nega que pretenda desenvolver armas nucleares e ameaça abandonar o TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear) caso seja submetido a sanções internacionais. Tanto Bush quanto Kerry alçaram a "ameaça iraniana" ao topo de suas prioridades. Mas, se os iranianos de fato viraram o leme na direção da bomba, é porque extraíram lições realistas de duas histórias divergentes: o Iraque e a Índia.
O Iraque desenvolvia ativamente um programa nuclear militar no final da década de 80. Nos estágios iniciais do programa, Saddam Hussein decidiu invadir o Kuait. A Guerra do Golfo, de 1991, e o subseqüente regime de sanções e inspeções imposto pela ONU deterioraram o programa nuclear iraquiano, que parece ter sido oficialmente abandonado em algum momento de 1993.
As inspeções da ONU prosseguiram até 1998, quando Saddam Hussein expulsou os inspetores, mas, como hoje se sabe, não retomou o programa nuclear. A invasão e a ocupação do Iraque evidenciam o sentido da doutrina da guerra preventiva de George Bush: os Estados Unidos proclamam o seu direito de agir militarmente contra Estados que teriam a intenção de desenvolver um arsenal nuclear, mesmo se não existir um programa nuclear com fins militares em execução.
A Índia recusou-se a assinar o TNP e conduziu seu primeiro teste nuclear em 1974, mas, em seguida, suspendeu indefinidamente novos ensaios. Durante mais de duas décadas, o país equilibrou-se na zona cinzenta das potências nucleares "ocultas", que abrangia também o Paquistão e Israel e hoje abrange a Coréia do Norte. Em maio de 1998, as cinco explosões atômicas conduzidas no deserto do Rajastão detonaram a ambigüidade e deslocaram a Índia para o círculo das potências nucleares abertas. Na ocasião, um enfurecido Bill Clinton ameaçou soterrar os indianos sob toneladas de sanções e o ministro do Exterior paquistanês vaticinou: "Isso não vai parar por aqui. A Índia forçará a sua admissão como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU".
As sanções contra a Índia nunca provocaram danos sérios e acabam de ser virtualmente eliminadas. Em setembro, na moldura da "guerra ao terror", Bush e o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, firmaram acordos bilaterais de cooperação em programas de defesa antimísseis, comércio de alta tecnologia e usos civis da energia nuclear. Logo depois, Índia, Japão, Alemanha e Brasil articularam uma campanha comum pela admissão dos quatro num Conselho de Segurança ampliado.
Índia ou Iraque? O Irã já fez uma escolha.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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