São Paulo, sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


O ano já começou

ROSÂNGELA APARECIDA TALIB


Apesar dos mais de cem anos de definição da laicidade do Estado, os governantes se curvam às pressões da Igreja Católica


É COSTUME no Brasil dizer que o ano só começa depois do Carnaval. Mas 2010 já começou. E começou triste, com o terremoto no Haiti e o Brasil chorando as vítimas do descaso histórico dos governos.
Mas 2010 começou também com boas expectativas. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos acaba de publicar o terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos, que contempla, entre outros, os direitos à união civil de pessoas do mesmo sexo e a adoção por casais homoafetivos.
Estabelece ainda a comissão da verdade, que deverá examinar as violações praticadas durante a ditadura militar dos anos 60. São questões de justiça e de respeito aos princípios internacionalmente reconhecidos dos direitos humanos.
O programa faz mais. Propõe mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos, demonstrando claro compromisso com o aprofundamento da laicidade do Estado, com a cultura de respeito aos diferentes credos religiosos e aos ateus, com a liberdade de expressão das diversas formas de fé características do país.
Finalmente, o PNDH-3 reconhece os direitos das mulheres como direitos humanos ao incluir a clara determinação governamental de reconhecer que, sem as mulheres, os direitos não são humanos.
Isso se expressa na proposição de ações coordenadas de governo que apoiem a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto. Sem o acesso a serviços públicos que permitam às mulheres exercer com liberdade seus direitos no campo reprodutivo, não há cidadania para nós.
Se a biologia nos concedeu o privilégio de sermos portadoras da capacidade de gerar novos seres humanos, a dignidade exige que possamos decidir sobre essa capacidade.
Nosso país -que, nos últimos anos, vem sendo reconhecido por seus avanços no campo da economia e da sustentabilidade, pela consolidação da democracia, pela melhoria das condições de vida da população mais pobre- alinhar-se-á aos países mais desenvolvidos do mundo ao assegurar uma legislação favorável à vida, à dignidade e à cidadania das mulheres, tornando legal o aborto.
Apenas as forças mais retrógradas do país se posicionam contrariamente a esse programa, incluindo ruralistas, militares e Igreja Católica -como demonstram declarações de um bispo publicadas neste jornal-, mais uma vez unidos contra os direitos mais elementares da população brasileira.
No Brasil, as mulheres católicas são as que compõem o maior número das que recorrem ao aborto. É também a população católica que em número significativo apoia leis que permitem às mulheres interromper o processo gestacional, ao menos em casos extremos, de risco para suas vidas, de gravidez resultante de estupro e de gestações de fetos sem condições de sobrevivência, conforme indicam pesquisas recentes da UnB e do Ibope.
Nem seriam necessárias essas pesquisas caso padres e bispos ouvissem seriamente o que lhes dizem as mulheres em suas confissões.
A hierarquia da igreja, porém, e alguns grupos católicos preferem ignorar essa realidade de suas próprias fiéis e reafirmar uma posição intransigente, sem tomar em consideração elementos da mesma doutrina católica que validam a decisão das mulheres por um aborto ou o fato de que, desde o século 17 até hoje, podem-se encontrar teólogos e teólogas, mesmo no Brasil, defensores da possibilidade de escolha por um aborto.
Na Espanha, 130 padres reunidos em um foro de curas acabam de assinar manifesto público reconhecendo a legitimidade do Estado para legislar sobre o aborto. Deixar mulheres católicas ignorarem as discussões internas da igreja a esse respeito, impedindo-as de saber que podem ter sua decisão pelo aborto apoiada religiosamente, é jogar contra suas vidas, é permitir que carreguem por anos, ou mesmo por toda a vida, um sentimento de culpa que as tortura.
Infelizmente, a democracia brasileira sofre ainda uma fragilidade estrutural. Apesar dos mais de cem anos de definição constitucional da laicidade do Estado, os governantes se curvam às pressões da Igreja Católica.
Um claro exemplo disso foi a concordata firmada entre o governo brasileiro e o Vaticano, no final do ano passado, sem que houvesse discussão ampla e aberta na sociedade, outorgando a essa instituição religiosa poderes e privilégios.
Felizmente, apesar de todas as pressões sofridas, o ministro Paulo Vannuchi mostrou-se firme em sua proposta. Esperamos que a realização do terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos contribua para que cidadãs e cidadãos brasileiros tenham seus direitos respeitados.


ROSÂNGELA APARECIDA TALIB, psicóloga, mestra em ciências da religião, é membro da equipe de coordenação das Católicas pelo Direito de Decidir.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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