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Aborto em plebiscito
Consulta popular sobre a descriminalização é uma boa oportunidade para instalar um debate qualificado sobre o tema
A SUGESTÃO de levar a
plebiscito a proposta
de descriminalizar o
aborto no Brasil ganhou evidência ao receber a adesão do ministro da Saúde, José
Gomes Temporão. Talvez não
seja a via mais eficaz para que a
interrupção voluntária da gravidez, dentro de certos limites, deixe de ser crime -como esta Folha defende-, mas é o melhor
meio de promover um debate
qualificado da questão.
De acordo com pesquisa Datafolha publicada no domingo passado, 65% dos brasileiros se
opõem a mudanças no "statu
quo"; 16% sustentam que o aborto deve ser permitido em mais situações do que as previstas pela
lei atual (risco de vida para a mãe
e gravidez resultante de estupro); e apenas 10% advogam pela
descriminalização plena.
É possível que esses números
mudem a partir do momento em
que defensores e opositores do
direito de aborto começarem a
explicitar seus argumentos, a
exemplo do que se deu no referendo sobre a proibição do comércio de armas. Mesmo que o
eleitor decida que tudo deve ficar
como está, o saldo do eventual
plebiscito terá sido positivo: a
população estará mais informada sobre um tema relevante e cada lado conhecerá melhor os argumentos do outro.
Em Portugal, que adotou a estratégia plebiscitária, foram necessárias duas consultas num
prazo de nove anos para que a sociedade mudasse de posição e
passasse a apoiar mudanças na
restritiva legislação local. Elas
foram finalmente sancionadas
na semana passada.
Discussões sobre o aborto são
sempre difíceis, porque esse é
um tema que mobiliza profundas convicções religiosas e humanitárias. Quem as tem -para
um lado ou para o outro- raramente se deixa convencer pelos
argumentos da parte adversária.
É importante, entretanto, que
se tragam para o debate novos
elementos que transcendam à
questão dos princípios. É aí que
devem entrar as considerações
de saúde pública.
Segundo a metodologia desenvolvida pelo Instituto Alan Guttmacher, centro de pesquisa de
saúde reprodutiva e políticas públicas dos EUA, realizaram-se no
Brasil 1,1 milhão de abortos clandestinos em 2005, número menor que o de 1992 (1,5 milhão).
Seria descabido cogitar de levar esse exército de mulheres -e
seus médicos e parteiras- para
trás das grades, como preconiza
a legislação. Uma parte dessas
brasileiras morre ou fica com seqüelas resultantes de abortos
(naturais ou induzidos) que se
complicam. Eles já são a quarta
causa de mortalidade materna.
O problema das discussões
principistas é que elas gravitam
em torno de polêmicas insolúveis acerca de quando a vida tem
início e deixam de levar em conta
a realidade sanitária, que não é
alterada por boas intenções ou
palavras de ordem.
Nem a ciência nem a religião
podem dar uma resposta satisfatória e universal sobre quando
começa a vida -se na concepção,
ao longo do desenvolvimento fetal ou no nascimento. A única alternativa é deixar que o direito
estabeleça o ponto, que será necessariamente arbitrário. O conjunto dos cidadãos e cidadãs tem
toda a legitimidade para fazê-lo.
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