São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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Aborto em plebiscito

Consulta popular sobre a descriminalização é uma boa oportunidade para instalar um debate qualificado sobre o tema

A SUGESTÃO de levar a plebiscito a proposta de descriminalizar o aborto no Brasil ganhou evidência ao receber a adesão do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Talvez não seja a via mais eficaz para que a interrupção voluntária da gravidez, dentro de certos limites, deixe de ser crime -como esta Folha defende-, mas é o melhor meio de promover um debate qualificado da questão.
De acordo com pesquisa Datafolha publicada no domingo passado, 65% dos brasileiros se opõem a mudanças no "statu quo"; 16% sustentam que o aborto deve ser permitido em mais situações do que as previstas pela lei atual (risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro); e apenas 10% advogam pela descriminalização plena.
É possível que esses números mudem a partir do momento em que defensores e opositores do direito de aborto começarem a explicitar seus argumentos, a exemplo do que se deu no referendo sobre a proibição do comércio de armas. Mesmo que o eleitor decida que tudo deve ficar como está, o saldo do eventual plebiscito terá sido positivo: a população estará mais informada sobre um tema relevante e cada lado conhecerá melhor os argumentos do outro.
Em Portugal, que adotou a estratégia plebiscitária, foram necessárias duas consultas num prazo de nove anos para que a sociedade mudasse de posição e passasse a apoiar mudanças na restritiva legislação local. Elas foram finalmente sancionadas na semana passada.
Discussões sobre o aborto são sempre difíceis, porque esse é um tema que mobiliza profundas convicções religiosas e humanitárias. Quem as tem -para um lado ou para o outro- raramente se deixa convencer pelos argumentos da parte adversária.
É importante, entretanto, que se tragam para o debate novos elementos que transcendam à questão dos princípios. É aí que devem entrar as considerações de saúde pública.
Segundo a metodologia desenvolvida pelo Instituto Alan Guttmacher, centro de pesquisa de saúde reprodutiva e políticas públicas dos EUA, realizaram-se no Brasil 1,1 milhão de abortos clandestinos em 2005, número menor que o de 1992 (1,5 milhão).
Seria descabido cogitar de levar esse exército de mulheres -e seus médicos e parteiras- para trás das grades, como preconiza a legislação. Uma parte dessas brasileiras morre ou fica com seqüelas resultantes de abortos (naturais ou induzidos) que se complicam. Eles já são a quarta causa de mortalidade materna.
O problema das discussões principistas é que elas gravitam em torno de polêmicas insolúveis acerca de quando a vida tem início e deixam de levar em conta a realidade sanitária, que não é alterada por boas intenções ou palavras de ordem.
Nem a ciência nem a religião podem dar uma resposta satisfatória e universal sobre quando começa a vida -se na concepção, ao longo do desenvolvimento fetal ou no nascimento. A única alternativa é deixar que o direito estabeleça o ponto, que será necessariamente arbitrário. O conjunto dos cidadãos e cidadãs tem toda a legitimidade para fazê-lo.


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