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TENDÊNCIAS/DEBATES
Visão de longo prazo
CIRO MORTELLA
A questão é saber como as empresas interessadas em transformar o país num pólo farmacêutico receberão as decisões sobre patentes
A POLÊMICA sobre a decisão do
governo brasileiro de decretar
a licença compulsória do medicamento usado no tratamento da
Aids Efavirenz prende-se menos ao
fato em si, visto que o mecanismo é
contemplado pela legislação e reconhecido pelos organismos internacionais, e mais ao seu significado mais
amplo para o futuro da indústria farmacêutica no país e de todos os segmentos intensivos em tecnologia.
Se, de fato, o governo pretende adotar medidas estratégicas de incentivo
à inovação em geral, que contemplariam, entre outras ações, a criação de
um complexo produtivo da saúde, o
recurso à licença compulsória, nos
termos em que se deu, precisa ser devidamente enquadrado.
Até onde se sabe, o principal objetivo do licenciamento compulsório foi
o de reduzir os gastos com a compra
de um medicamento anti-retroviral
usado no Programa Nacional de DST
e Aids mediante a mera troca de fornecedores internacionais -ao menos
no momento.
Nesse contexto, a medida pode ser
entendida como circunstancial. Teria
como pano de fundo o subfinanciamento da saúde, as notórias dificuldades de gestão do poder público e a
pressão social por melhores serviços
na área da saúde.
Seja qual for o motivo, a economia
de dinheiro não pode justificar medidas de exceção, ainda que legítimas,
sob pena de comprometer programas
importantes e estratégicos para o desenvolvimento do país, de indústrias
de ponta, como a farmacêutica.
Cabe perguntar como a importação
se harmoniza com a intenção manifesta do governo de fazer com que a
indústria farmacêutica no país deixe
de ser uma mera produtora de remédios comuns e passe a fazer grandes
investimentos para a descoberta de
novos produtos que resolvam o histórico problema do acesso da população
aos medicamentos.
É certo que o papel da propriedade
intelectual como ferramenta fundamental do processo de geração de conhecimento e sua transformação em
produtos úteis e economicamente
vantajosos para a sociedade ainda é
mal compreendido.
Desenvolvimento tecnológico sem
respeito à propriedade intelectual é
simplesmente inviável.
Qualificados integrantes da área
econômica do governo sabem disso e
manifestaram esse entendimento recentemente, ao afirmar que os segmentos inovadores (a indústria farmacêutica lidera a inovação mundial)
devem "merecer estímulo e apoio sistêmico com empenho redobrado, como fazem os países desenvolvidos e
os países em desenvolvimento".
O país precisa definir uma orientação clara a respeito da propriedade
intelectual e sobre como adequá-la a
esses objetivos maiores, no sentido de
garantir um ambiente econômico
adequado à atração de projetos e investimentos.
Todo processo de inovação depende das chamadas patentes, sobretudo
na área farmacêutica, cujos produtos
sofisticados demandam um longo período de maturação e vultosos recursos em pesquisa e desenvolvimento.
Por isso, as leis que regem a propriedade intelectual e os mecanismos
que a flexibilizam precisariam estar
sintonizados com uma política de incentivo à modernização tecnológica
do complexo produtivo da saúde.
Nunca deveriam ser usados só como
arma de pressão em negociações.
É sabido que o país ainda não possui capacitação tecnológica para fabricar ou desenvolver medicamentos
de ponta, seja para o tratamento da
Aids, seja para o tratamento de outras
enfermidades importantes.
Os avanços alcançados por laboratórios públicos na produção de vacinas, por exemplo, só foram possíveis
mediante acordos de transferência de
tecnologia firmados com laboratórios
internacionais e políticas de incentivo sustentadas no tempo, com persistência e foco no futuro.
Nesse contexto, a grande questão é
saber como atitudes controversas no
campo da propriedade intelectual serão entendidas pelas empresas nacionais e internacionais interessadas em
transformar o país num pólo farmacêutico forte e globalizado, que gere
riqueza e produza aqui os medicamentos de que a população brasileira
necessita. Um projeto assim, sustentável, requer visão de longo prazo, que
lide com um horizonte mais amplo e
objetivos maiores e duradouros.
A harmonização dessa visão com as
pressões sociais imediatas e a deficiência de meios para atendê-las é o
dilema clássico da gestão na saúde.
Resistir às saídas fáceis é difícil, mas é
o desafio dos verdadeiros estadistas.
CIRO MORTELLA, 49, é presidente-executivo da Febrafarma (Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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