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São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Jogos, Lula e Kirchner

CESAR MAIA

Duas teorias são cada vez mais importantes em suas versões adaptadas à política: a Teoria dos Jogos, da qual um dos autores -John Nash- foi popularizado no filme "Uma Mente Brilhante", e A Teoria da Catástrofe, de René Thom. Na primeira, analisa-se o comportamento de um político ou grupo em função do comportamento esperado de outro, da sociedade, da economia ou de grupos. Na segunda, analisa-se um momento de ruptura ou descontinuidade em relação a um processo mais ou menos longo que não é percebido durante esse longo tempo. Um dos exercícios de jogos mais simples -o dilema do prisioneiro- mostra as vantagens e desvantagens de cooperar ou de trair. Se um entrega o outro, pode até se dar bem. Mas, se os dois se entregam, os dois se dão mal.
A infinidade de exercícios de jogos aplicados à administração e à sociedade terminou sendo cristalizada numa grande simulação, com uso de recursos informáticos, na qual se verificou, por meio da repetição, qual é o comportamento que gera o melhor resultado para os "jogadores". Esse exercício partiu do melhor resultado para cada "jogador" numa relação sistemática num longo período de tempo. A resultante é que a cooperação e a verdade maximizavam os resultados para ambos. Ou seja, a cooperação e a verdade significam mais que um elemento ético: significam interesse a longo prazo.
No caso da Teoria da Catástrofe, parte-se de fatos políticos não imediatamente explicados para entender as razões de longo prazo que o produziram e que não foram percebidas. Nas duas teorias, há um ambiente de imprevisibilidade implícita. Quando um político ou um partido constrói um personagem ou uma trama, reiterando sempre e horizontalmente as mesmas idéias, desenvolve um jogo de cooperação com seu eleitor e um jogo de verdade com seu não-eleitor. Esse processo vai gerando um quadro de previsibilidade futura e as ações vão fazendo com que cresça o número dos que cooperam ou dos que se opõem, dependendo da confirmação, pelos resultados, do que se havia dito e prometido. Quando se rompe essa estrutura de idéias, passa-se do exercício da cooperação para o da traição, usando a nomenclatura do dilema do prisioneiro. O eleitor continua cooperando, mas o político o trai. Esse curto-circuito nas relações de confiança não muda as relações de desconfiança a seu favor. Ou seja, os não-eleitores permanecem num quadro de desconfiança durante muito tempo até que possam se convencer de que o jogo mudou.



A decisão do governo Lula de priorizar sua credibilidade perante seus não-eleitores gera um caminho sem volta

A mudança de personagem ou de trama afeta a cooperação e não gera nova confiança: desestabiliza-se o jogo e perdem todos. O tempo político em governo não é suficiente para construir novas lealdades, mas o é para destruir as anteriores. Com isso, caminha-se para a ruptura. Mas, quando percebem isso, o político ou o partido racionalizam suas ações e correm de novo em direção ao jogo anterior. Para isso, precisam intensificar e ampliar os compromissos que tinham, emblematizando-os. E, então, desconstroem-se de uma vez por todas as novas relações de lealdade que pretendiam afirmar e não se tem tempo de reconstruir a confiança anterior dos eleitores. Nesse sentido, o único jogo que não leva à "catástrofe" é aquele em que a proposta de mudança é introduzida gradualmente, a partir da afirmação das lealdades anteriores.
A decisão do governo Lula de priorizar sua credibilidade perante seus não-eleitores através da derrubada da inflação, utilizando os instrumentos que criticava, e de uma nova ortodoxia fiscal gera um caminho sem volta e uma recessão sem fim que, no máximo, pode ser alternada com bolhas de crescimento eventual. Quando descobrir que não ganhou a confiança dos outros e quiser retornar ao jogo da cooperação com seus eleitores de sempre, terá de rever os emblemas que criou e, nesse momento, desmontará a conjuntura. De certa forma, é o que está acontecendo até prematuramente. Se tivesse começado por uma maior flexibilidade monetária e fiscal -uma queda gradual da inflação, medidas, e não reformas- traria a valor presente os inevitáveis conflitos com essa poeira chamada mercado e poderia dosá-los pelos desdobramentos continentais de uma crise potencial, atraindo o outro "jogador" para uma cooperação forçada pelos riscos incorporados. Não o fez e não terá mais como fazê-lo. Terá de correr para o democratismo, o assistencialismo e o populismo.
O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, jogou e está jogando absolutamente certo. Vencidas as eleições, correu em direção a seu eleitor, confirmou as lealdades, emblematizou as primeiras medidas e primeiros discursos, expôs os conflitos e estabeleceu um pacto de confiança. Assim, poderá gradualmente ir ajustando suas ações e medidas, readaptando as linhas de cooperação sem suspeita de traição, e, gradualmente também, atraindo para um ambiente intermediário os seus não-eleitores. Dependerá dos resultados, nessa dinâmica, possíveis. É verdade que a situação desarrumada da Argentina facilitou escolher o jogo certo, o que não lhe tira o mérito, pois, se extrapolarmos o jogo de Lula para lá, mais conservador ainda deveria ter sido Kirchner que ele mesmo. O jogo está jogado!

Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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