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JOSÉ SARNEY
Mal necessário
O Papa é infalível. Assim estabeleceram Pio 9º e o Concílio Vaticano 1º em 1870. Mas o Papa também é
um homem e João Paulo 2º acrescenta
a suas virtudes ser um pensador. Gosta de escrever, de publicar livros que
vão do teatro à poesia. Agora está sendo anunciado o lançamento de seu
novo livro -"Memória e Identidade"-, no qual, segundo divulgam os
jornais, consta a tese de que "o comunismo foi um mal necessário, permitido por Deus para render oportunidades para o bem".
Diz o Papa: "Experimentei pessoalmente a realidade das ideologias do
mal". Quero, como cristão, divergir de
um dos maiores, senão o maior homem do século 20, a quem devemos
uma parte essencial da derrubada do
comunismo. Mas, primeiro, quero dizer que a noção do mal exclui a de ser
necessário em qualquer situação.
Não podemos esquecer a frase de
Churchill a Lloyd George: "De todas as
tiranias da história, a mais destrutiva e
a mais degradante é a bolchevista".
Basta citar a filosofia de Lênin para a
Comissão Extraordinária (Cheka):
"Não somos um tribunal, somos um
órgão de luta. Não julgamos o inimigo, nós o golpeamos. Não estamos fazendo guerra aos indivíduos, estamos
exterminando a burguesia como classe. Não buscamos provas nem testemunhos para revelar fatos ou palavras
contra o poder soviético. A primeira
pergunta que formulamos é: "A que
classe pertence, quais são suas origens, sua educação, sua profissão?".
Estas perguntas definem o destino do
acusado. Tal é a essência do terror vermelho".
Não posso pensar que os milhões de
mortos, os expurgos que liquidaram
milhões de pessoas, sem culpa, só pelo
terror, pela desconfiança dogmática
de Stálin, que matou seus companheiros, amigos e parentes, possa, em
qualquer tempo, ser um mal necessário.
Já se disse que os "totalitarismos rivais são consangüíneos". Hitler também tinha uma concepção que pode
ser aplicada atualmente e que ele
transmitiu ao alto comando em Obersalzburg, a 22 de agosto de 1939: "Usarei o pretexto propagandístico para desencadear a guerra e, para o caso, pouco importa se é verossímil. Ao vencedor não se pergunta se disse a verdade. Quando se começa a fazer a guerra, o que importa não é a verdade, sim a vitória".
Esses males não precisavam existir para que a humanidade tivesse a
oportunidade para o bem. Disse o Papa que "esse mal (o comunismo) era
de alguma forma necessário para o
mundo e para a humanidade. Pode
acontecer, na verdade, que, em certas
situações humanas específicas, o mal
seja revelado como algo útil, na medida em que cria oportunidades para o
bem". É difícil aceitar, mesmo com a
autoridade papal, para mim, que isso
seja verdadeiro, que o comunismo, o
nazismo ou qualquer forma do mal
seja necessária. Foi por causa dessa
concepção do "império do mal" que
Bush desestabilizou a paz mundial, e
será pior se ele julgar que esse mal é
necessário para o bem.
Há sempre o perigo de um julgamento político feito por uma autoridade religiosa tomar uma dimensão
que cria deturpações dentro da sociedade. Num exemplo menor, vimos a
"guerra dos deuses", inserida nas últimas eleições brasileiras.
O Papa João Paulo 2º foi melhor escritor nos seus poemas do que nesse
julgamento.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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