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O medo do medo na agenda política
BEATRIZ AFFONSO e PAULO ENDO
Em 15 Estados estão em curso investigações sobre a atuação de esquadrões da morte com envolvimento de agentes públicos
APÓS A matança desordenada
iniciada no mês de maio no Estado de São Paulo e, com ela, a
guerra urbana deflagrada e a demonstração de claros sinais de vitalidade e
força de insidiosa organização do crime, vivemos agora outro medo: o medo do medo. Esse assustador e imediatista pânico social que recrudesce
e aponta para outras violências, como
a redução da maioridade penal, o endurecimento das penas criminais e o
aumento das ações truculentas promovidas pelas polícias, chegando a
ser cogitada a pena de morte.
A nossa democracia já faz vista
grossa à profunda fragilidade em que
se encontra o respeito ao Estado de
Direito ao promover ações abusivas e
amplamente publicizadas dos aparatos de segurança pública. A aprovação
social das práticas de endurecimento
fala do medo, mas também dos atos
que se seguem ao medo e ao pânico.
Não saberemos reagir ao medo senão gerando mais medo? Não saberemos reagir à morte a não ser gerando
mais mortes?
Quais lições devemos tirar do fracasso da Febem na reeducação dos
adolescentes pobres e em conflito
com a lei que, por meio do encarceramento precoce e em condições degradantes, são submetidos a tortura nas
várias unidades de internação, como
está demonstrado no relatório da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos referente ao caso que lá
tramita?
Acaso não é sabido que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
ordenou ao Estado brasileiro, nos
âmbitos federal, estadual e municipal,
no último ano, que tomasse medidas
urgentes para a proteção da vida dos
adolescentes internados no complexo
do Tatuapé e para os presos encarcerados no presídio de Araraquara?
Não é amplamente conhecido o fato de que, há décadas, adolescentes e
presos adultos são espancados, torturados e mortos no interior das unidades de internação da Febem e nas penitenciárias de adultos?
O princípio mínimo de respeito pelo Estado como um garantidor da lei
permanece ameaçado enquanto seus
agentes castigam ilegalmente aqueles
que estão sob sua tutela.
Nisso o massacre do Carandiru é
exemplar. Não há ainda responsabilização pelas 111 mortes que ocorreram
no presídio, ainda que sejam conhecidas as autorias e que o caso tenha recebido um relatório final da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, no qual foi explicitada a responsabilidade do Estado pelas mortes e
ações ilegais, incluindo a injustificável morosidade para o processamento
do caso na Justiça interna.
Esquecemos o massacre dos moradores de rua no centro de São Paulo
em 2004? Podemos ignorar a lista
imensa de atrocidades cometidas, sobretudo contra os pobres e miseráveis, que ainda permanecem impunes
em nosso país?
Redução da maioridade penal?
Quantos números devemos acrescentar às estatísticas, signos do "saneamento" social que multiplica corpos,
amontoando-os nos IMLs, muitos
enterrados -ou "soterrados"- sem
nome?
Quanto à pena de morte, se, por um
lado, sua discussão esbarra no compromisso a ser honrado pelo Brasil
por ocasião da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos,
em 1992, a qual, em seu artigo 4º,
proíbe a adoção de tal pena aos países
que não a adotaram ou já a aboliram,
por outro, em 15 Estados brasileiros
estão em curso investigações sobre a
atuação de esquadrões da morte com
envolvimento de agentes públicos.
Estamos amedrontados, é verdade,
mas não podemos responder a isso
com mais violência, mais matança e
mais crueldade.
Ainda estamos aguardando e esperando -em pé- os efeitos de uma sociedade mais igualitária que ainda
não conhecemos. Não vamos cair na
armadilha fácil de autorizar o trabalho sujo nas penitenciárias, nas unidades da Febem e nas regiões pobres
de nossas cidades porque é a isso,
principalmente, que reativamente
respondem os que não têm outro instrumento de retaliação à violência sofrida senão a gazua, o revólver, a metralhadora, o assassinato.
Se a opção e as soluções que nos
restam se espremem entre morrer ou
matar, como poderemos salvaguardar a todos, e a nós mesmos, o direito
de viver ou, dito de outro modo, o direito de ter uma morte morrida, e não
uma morte matada?
Defender as práticas de endurecimento e brutalidade não revela nada
de novo, ao contrário, só evidencia a
descrença em nossas cidades e em
nossos governantes, além de uma
descrença moral em cada cidadão e
no bom convívio citadino, que ainda
não pudemos viver plenamente.
Devemos recusar agora a trágica
faina que quer se impor; porque não
queremos, não podemos e não aceitamos passar a vida enterrando mortos.
BEATRIZ AFFONSO, socióloga, mestre em sociologia pela USP, é diretora do escritório do Centro pela Justiça e o
Direito Internacional (CEJIL) no Brasil.
PAULO ENDO, psicanalista e professor doutor do Instituto de Psicologia da USP, é autor do livro "A Violência no
Coração da Cidade" (Prêmio Jabuti 2006).
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