São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2006

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O medo do medo na agenda política

BEATRIZ AFFONSO e PAULO ENDO

Em 15 Estados estão em curso investigações sobre a atuação de esquadrões da morte com envolvimento de agentes públicos

APÓS A matança desordenada iniciada no mês de maio no Estado de São Paulo e, com ela, a guerra urbana deflagrada e a demonstração de claros sinais de vitalidade e força de insidiosa organização do crime, vivemos agora outro medo: o medo do medo. Esse assustador e imediatista pânico social que recrudesce e aponta para outras violências, como a redução da maioridade penal, o endurecimento das penas criminais e o aumento das ações truculentas promovidas pelas polícias, chegando a ser cogitada a pena de morte.
A nossa democracia já faz vista grossa à profunda fragilidade em que se encontra o respeito ao Estado de Direito ao promover ações abusivas e amplamente publicizadas dos aparatos de segurança pública. A aprovação social das práticas de endurecimento fala do medo, mas também dos atos que se seguem ao medo e ao pânico.
Não saberemos reagir ao medo senão gerando mais medo? Não saberemos reagir à morte a não ser gerando mais mortes?
Quais lições devemos tirar do fracasso da Febem na reeducação dos adolescentes pobres e em conflito com a lei que, por meio do encarceramento precoce e em condições degradantes, são submetidos a tortura nas várias unidades de internação, como está demonstrado no relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos referente ao caso que lá tramita?
Acaso não é sabido que a Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou ao Estado brasileiro, nos âmbitos federal, estadual e municipal, no último ano, que tomasse medidas urgentes para a proteção da vida dos adolescentes internados no complexo do Tatuapé e para os presos encarcerados no presídio de Araraquara? Não é amplamente conhecido o fato de que, há décadas, adolescentes e presos adultos são espancados, torturados e mortos no interior das unidades de internação da Febem e nas penitenciárias de adultos?
O princípio mínimo de respeito pelo Estado como um garantidor da lei permanece ameaçado enquanto seus agentes castigam ilegalmente aqueles que estão sob sua tutela.
Nisso o massacre do Carandiru é exemplar. Não há ainda responsabilização pelas 111 mortes que ocorreram no presídio, ainda que sejam conhecidas as autorias e que o caso tenha recebido um relatório final da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no qual foi explicitada a responsabilidade do Estado pelas mortes e ações ilegais, incluindo a injustificável morosidade para o processamento do caso na Justiça interna.
Esquecemos o massacre dos moradores de rua no centro de São Paulo em 2004? Podemos ignorar a lista imensa de atrocidades cometidas, sobretudo contra os pobres e miseráveis, que ainda permanecem impunes em nosso país?
Redução da maioridade penal?
Quantos números devemos acrescentar às estatísticas, signos do "saneamento" social que multiplica corpos, amontoando-os nos IMLs, muitos enterrados -ou "soterrados"- sem nome?
Quanto à pena de morte, se, por um lado, sua discussão esbarra no compromisso a ser honrado pelo Brasil por ocasião da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1992, a qual, em seu artigo 4º, proíbe a adoção de tal pena aos países que não a adotaram ou já a aboliram, por outro, em 15 Estados brasileiros estão em curso investigações sobre a atuação de esquadrões da morte com envolvimento de agentes públicos.
Estamos amedrontados, é verdade, mas não podemos responder a isso com mais violência, mais matança e mais crueldade.
Ainda estamos aguardando e esperando -em pé- os efeitos de uma sociedade mais igualitária que ainda não conhecemos. Não vamos cair na armadilha fácil de autorizar o trabalho sujo nas penitenciárias, nas unidades da Febem e nas regiões pobres de nossas cidades porque é a isso, principalmente, que reativamente respondem os que não têm outro instrumento de retaliação à violência sofrida senão a gazua, o revólver, a metralhadora, o assassinato.
Se a opção e as soluções que nos restam se espremem entre morrer ou matar, como poderemos salvaguardar a todos, e a nós mesmos, o direito de viver ou, dito de outro modo, o direito de ter uma morte morrida, e não uma morte matada?
Defender as práticas de endurecimento e brutalidade não revela nada de novo, ao contrário, só evidencia a descrença em nossas cidades e em nossos governantes, além de uma descrença moral em cada cidadão e no bom convívio citadino, que ainda não pudemos viver plenamente.
Devemos recusar agora a trágica faina que quer se impor; porque não queremos, não podemos e não aceitamos passar a vida enterrando mortos.


BEATRIZ AFFONSO, socióloga, mestre em sociologia pela USP, é diretora do escritório do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) no Brasil.
PAULO ENDO, psicanalista e professor doutor do Instituto de Psicologia da USP, é autor do livro "A Violência no Coração da Cidade" (Prêmio Jabuti 2006).


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