São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Cinzas numa ânfora

VI PINOCHET uma única vez, quando da posse de Aylwin, que o sucedeu na Presidência do Chile. Ficou-me a impressão de um homem duro, que gostava de sua aparência de prepotente e autoritário. Fazia o gênero da figura que verdadeiramente era: o ditador. De uma vermelhidão que chegava ao escarlate, não precisaria de ocasiões em que o sangue lhe subisse à cabeça. Sua fala era uma cadência militar, marcada pela ordem unida.
Meu olhar, fixado nos seus pequenos olhos bem azuis levemente escondidos por pálpebras gorduchas, não via sinal do que estava pensando. Era a expressão de uma dureza fria, pronto para exercer o poder absoluto em sua totalidade.
É claro que não tive nenhuma dúvida de que ali se encontrava um homem capaz de cometer todas as atrocidades que lhe eram atribuídas. Seu rosto era fechado, e a chave que ele podia dar para abri-lo ou entendê-lo era o medo que inspirava.
Eu estava na antevéspera de deixar a Presidência: 12 de março de 1990. Fora assistir à posse de meu amigo Aylwin e, ao chegar ao aeroporto, encontrei um grande aparato militar para as honras de chefe de Estado e, ao pé da escada, o general Pinochet. Foi um choque que não esperava e que me constrangeu. Durante todo o meu mandato, tendo visitado todos os países da América do Sul, evitei ir ao Chile, justamente por causa de Pinochet e da cruzada pela democracia no continente, que Alfonsín, Sanguinetti e eu promovíamos. Mantivéramos uma articulação com a oposição chilena, com contatos permanentes, apoiando a engenharia do "Plebiscito" e dando respaldo político à redemocratização chilena, feita sem rupturas sangrentas.
Ao contrário de outras aberturas, a do Chile foi tutelada, tendo sido assegurado a Pinochet o lugar de senador vitalício, uma parcela do poder e a autonomia das Forças Armadas.
O Chile iniciava seu novo caminho. Tudo era incerto e perigoso. A figura dominadora de Pinochet saía, mas continuava. No dia seguinte, fui tomar café com o novo presidente. Era a antítese de Pinochet. Professor, voz macia, simples, culto, com um sorriso de bondade, educado e extremamente amável. Coube-lhe construir a "concertación" dos partidos políticos, que soube ficar unida, consolidar a democracia e manter o Chile num caminho de progresso. Foi a transição em que os políticos foram os mais competentes e sábios.
Ainda existem feridas a cicatrizar, mas o importante foi feito, até mesmo cremar o Pinochet e deixar suas cinzas numa ânfora, como uma página virada e triste da história chilena.


jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY
escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Nelson Motta: Teste seus conhecimentos
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.