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JOSÉ SARNEY
Cinzas numa ânfora
VI PINOCHET uma única vez,
quando da posse de Aylwin,
que o sucedeu na Presidência do Chile. Ficou-me a impressão
de um homem duro, que gostava de
sua aparência de prepotente e autoritário. Fazia o gênero da figura
que verdadeiramente era: o ditador. De uma vermelhidão que chegava ao escarlate, não precisaria de
ocasiões em que o sangue lhe subisse à cabeça. Sua fala era uma cadência militar, marcada pela ordem unida.
Meu olhar, fixado nos seus pequenos olhos bem azuis levemente
escondidos por pálpebras gorduchas, não via sinal do que estava
pensando. Era a expressão de uma
dureza fria, pronto para exercer o
poder absoluto em sua totalidade.
É claro que não tive nenhuma dúvida de que ali se encontrava um
homem capaz de cometer todas as
atrocidades que lhe eram atribuídas. Seu rosto era fechado, e a
chave que ele podia dar para abri-lo
ou entendê-lo era o medo que
inspirava.
Eu estava na antevéspera de deixar a Presidência: 12 de março de
1990. Fora assistir à posse de meu
amigo Aylwin e, ao chegar ao aeroporto, encontrei um grande aparato militar para as honras de chefe
de Estado e, ao pé da escada, o general Pinochet. Foi um choque que
não esperava e que me constrangeu. Durante todo o meu mandato,
tendo visitado todos os países da
América do Sul, evitei ir ao Chile,
justamente por causa de Pinochet
e da cruzada pela democracia no
continente, que Alfonsín, Sanguinetti e eu promovíamos. Mantivéramos uma articulação com a oposição chilena, com contatos permanentes, apoiando a engenharia do
"Plebiscito" e dando respaldo político à redemocratização chilena,
feita sem rupturas sangrentas.
Ao contrário de outras aberturas, a do Chile foi tutelada, tendo
sido assegurado a Pinochet o lugar
de senador vitalício, uma parcela
do poder e a autonomia das Forças
Armadas.
O Chile iniciava seu novo caminho. Tudo era incerto e perigoso. A
figura dominadora de Pinochet
saía, mas continuava.
No dia seguinte, fui tomar café
com o novo presidente. Era a antítese de Pinochet. Professor, voz
macia, simples, culto, com um sorriso de bondade, educado e extremamente amável.
Coube-lhe construir a "concertación" dos partidos políticos, que
soube ficar unida, consolidar a democracia e manter o Chile num caminho de progresso. Foi a transição em que os políticos foram os
mais competentes e sábios.
Ainda existem feridas a cicatrizar, mas o importante foi feito, até
mesmo cremar o Pinochet e deixar
suas cinzas numa ânfora, como
uma página virada e triste da história chilena.
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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