São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Uvas azedas ou amargas

A reunião da Cúpula das Américas deixou um saldo insosso. Tanto falaram em fugir da retórica latina que os americanos aderiram a ela. Esse formato nasceu há 15 anos, quando foi fundado, em Acapulco, o Grupo dos Oito, por meio do qual os principais países da América do Sul e o México se dispuseram a construir uma cúpula para acertar uma política presidencial conjunta diante de problemas como a Nicarágua vir a ser uma nova Cuba.
Nesse quadro, surge a idéia da Alca. Não há como esconder que é ela que está na base de tudo e, para ela ser vendida, criou-se esse pirotécnico cenário. O bonde está andando.
Sei bem das conseqüências e implicações que envolvem o projeto. Para os americanos, é uma antecipação do futuro e a ocupação do mercado dos outros. Vem dos ingleses essa política colonial de abertura de mercados para dominá-los, herdada pelos americanos quando o império britânico soçobrou. É a tal política da gaiola. O passarinho fica solto, pode cantar e pular, mas a gaiola tem dono.
Em Monterrey, o presidente Bush declarou: "Espero que aqueles que expressaram alguma oposição à Alca olhem os fatos. E os fatos são que o Nafta [a Alca do México, do Canadá e dos EUA] melhorou a vida das pessoas e acabou [!] com a pobreza em partes de nossa vizinhança [México]". Quero contestar Bush com palavras insuspeitas do "New York Times", que assim se referiu aos dez anos do acordo: "O Nafta reforçou o México para promover o crescimento das empresas americanas, porém não fez do próprio país uma economia produtiva e independente".
Estrada Gallegos, diretor do Centro de Estudos Regionais Mexicanos, num trabalho sobre o Nafta, diz-nos que ele é justamente um "contra-exemplo paradigmático". Ele afirma que o "caso mexicano é um espelho quebrado". Lembra que o México, sob o Nafta, tem renda per capita abaixo da de países como a Costa Rica e o Chile. Cresceu a maquilagem industrial, toda ela com mão-de-obra barata, paraíso para multinacionais. Mesmo assim, a concorrência chinesa ameaça.
A vantagem do México, depois do Nafta, em relação à América Latina foi um crescimento de 1%, inferior ao que teve entre 1948 e 1973, de 3,2%. Em contraste, mesmo com a crise asiática e sem Nafta, a Coréia cresceu 4,3%, e a China, 7%. A vantagem foi dos norte-americanos: nos dez anos de Nafta, o seu poder de compra cresceu 10%, contra miseráveis 0,2% dos mexicanos. Belo exemplo para a Alca! Esses números são do trabalho de Gallegos.
As barreiras alfandegárias americanas destroçaram a agricultura mexicana e barraram com taxações o sorgo, o tomate, o feijão e outras commodities.
Houve -segundo Joseph Stiglitz, no "New York Times"- um desequilíbrio descomunal da frágil economia mexicana em concorrência com a americana.
Não sei onde o presidente Bush foi buscar o exemplo do Nafta para dizer que ele acabou com a pobreza mexicana. Os jornais mexicanos dizem o contrário: os tratados de livre comércio são "uvas amargas". Eu prefiro chamá-las de azedas. E uva azeda não é fruta para o Brasil correr atrás.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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