São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 2010

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RUY CASTRO

Símbolo vs. destino

RIO DE JANEIRO - Há algo de simbólico na morte de Zilda Arns. Morreu sob os escombros de uma igreja no terremoto de Porto Príncipe enquanto se preparava para ensinar higiene, nutrição e saúde às crianças haitianas. Tal discurso era seu "métier" e, com ele, irradiado para centenas de milhares de voluntários, calcula-se que tenha salvado milhões de vidas em dois ou três continentes.
Morreu numa igreja, mas poderia ter sido num asilo para idosos, creche ou escola. Em qualquer desses cenários, estava em casa. E foi no Haiti, mas poderia ter sido no Maranhão, na Bolívia, na Guiné-Bissau ou em qualquer lugar onde o nível de miséria passasse do tolerável. Mas não creio que, para dona Zilda, houvesse um nível "tolerável".
Nelson Rodrigues dizia que, se Cristo, em vez de morrer na cruz, tivesse morrido de coqueluche aos quatro anos, não teria sido Cristo. Os heróis costumam morrer em combate, porque não dão tempo ao destino de flagrá-los na cama ou na cadeira de balanço, aposentados, nanando netos ou assistindo à novela. Dona Zilda, aos 75 anos, parecia tão ativa quanto na época em que começou a Pastoral da Criança, em 1983 -talvez até mais, porque, em 2004, ajudara a fundar a Pastoral do Idoso.
Em 2003, outro grande brasileiro pela paz, o diplomata Sergio Vieira de Mello (bem lembrado por Barbara Gancia ontem na Folha), morreu num ataque terrorista às instalações da ONU em Bagdá. A guerra é assim mesmo: mata os que saem a campo para tentar matá-la. É duro, mas faz parte do jogo.
Já o que aconteceu no Haiti é absurdo, inexplicável. Supondo que o terremoto fosse inevitável, Zilda Arns deveria estar entre os que iriam para lá ajudar as vítimas, não para ser uma delas. Parece uma brincadeira do destino -este, aliás, famoso pelo mau gosto.


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