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RUY CASTRO
Símbolo vs. destino
RIO DE JANEIRO - Há algo de
simbólico na morte de Zilda Arns.
Morreu sob os escombros de uma
igreja no terremoto de Porto Príncipe enquanto se preparava para
ensinar higiene, nutrição e saúde às
crianças haitianas. Tal discurso era
seu "métier" e, com ele, irradiado
para centenas de milhares de voluntários, calcula-se que tenha salvado milhões de vidas em dois ou
três continentes.
Morreu numa igreja, mas poderia
ter sido num asilo para idosos, creche ou escola. Em qualquer desses
cenários, estava em casa. E foi no
Haiti, mas poderia ter sido no Maranhão, na Bolívia, na Guiné-Bissau
ou em qualquer lugar onde o nível
de miséria passasse do tolerável.
Mas não creio que, para dona Zilda,
houvesse um nível "tolerável".
Nelson Rodrigues dizia que, se
Cristo, em vez de morrer na cruz, tivesse morrido de coqueluche aos
quatro anos, não teria sido Cristo.
Os heróis costumam morrer em
combate, porque não dão tempo ao
destino de flagrá-los na cama ou na
cadeira de balanço, aposentados,
nanando netos ou assistindo à novela. Dona Zilda, aos 75 anos, parecia tão ativa quanto na época em
que começou a Pastoral da Criança,
em 1983 -talvez até mais, porque,
em 2004, ajudara a fundar a Pastoral do Idoso.
Em 2003, outro grande brasileiro
pela paz, o diplomata Sergio Vieira
de Mello (bem lembrado por Barbara Gancia ontem na Folha), morreu
num ataque terrorista às instalações da ONU em Bagdá. A guerra é
assim mesmo: mata os que saem a
campo para tentar matá-la. É duro,
mas faz parte do jogo.
Já o que aconteceu no Haiti é absurdo, inexplicável. Supondo que o
terremoto fosse inevitável, Zilda
Arns deveria estar entre os que
iriam para lá ajudar as vítimas, não
para ser uma delas. Parece uma
brincadeira do destino -este, aliás,
famoso pelo mau gosto.
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