São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 2000


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ARIANO SUASSUNA

Marilene e Raduan

Em dezembro do ano passado, tive a honra e a alegria de receber em minha casa dois escritores brasileiros, Marilene Felinto e Raduan Nassar. De Raduan, eu já conhecia "Lavoura arcaica". De Marilene Felinto, lera as pungentes, belas e preocupantes palavras que ela pronunciou em 1998, numa feira do livro brasileiro, em Paris. Falando a respeito de sua condição de escritora, Marilene afirmou ali que, na época de escritores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, "a literatura brasileira era escrita por pessoas que tinham, de algum modo, vivido na excepcionalidade e tinham o que contar. E contavam inaugurando uma fala pessoal e radical em sua originalidade. Eram artistas".
Num tom que logo se reconhece como sincero e sofrido, Marilene volta ao tema em torno do qual vai urdindo suas terríveis variações: "A impressão que tenho é a de que, antes, os escritores brasileiros viviam e, portanto, escreviam. Escreviam a partir da experiência vivida, com verdade e força dramática (...). Hoje, pelo contrário, os escritores parecem que flanam, bóiam numa onda de diletantismo que relega a literatura a um hobby das classes médias altas do país. É enquanto artistas que os escritores brasileiros pecam. Como a narrativa deles não expressa uma pessoa, não expressa, portanto, nenhuma paisagem humana. São sombras que escrevem sobre sombras para outras sombras. A literatura brasileira de hoje é a literatura da verborragia e do show -está atrelada à televisão, à música popular, à imprensa. É uma literatura sem leitor, sem público (...) É uma literatura sem crítica -a que existe se encolhe sobre si mesma nas universidades de elite, escreve sobre si mesma, revela total desinteresse pela realidade à sua volta".
Correndo o risco de acrescentar outro dado à justa indignação de Marilene Felinto, anoto ainda o fato de que, em sua maioria, os críticos, hoje, não se interessam mais pelas obras literárias -preferem as de outros críticos e teóricos da literatura. E Marilene continua: "O que me salva como escritora brasileira hoje é talvez o ideal não atingido (...), a idéia de que escrever é um exercício em busca de verdades (...). O único caminho de luz está na língua portuguesa brasileira, essa língua que nos faz sós e únicos no que o estrangeiro chamou de "América Latina'(...). Minha geração brasileira não vivenciou a ditadura militar. Tem outra historia para contar, tem outro caminho para encontrar no vale de sombras. Meu caminho (...) é de solidão maior ainda no continente deste país gigante, onde eu não sou nada além de uma eterna imigrante em busca de uma língua própria".
As palavras de Marilene Felinto (com as quais estou de inteiro acordo) deixaram-me preocupado, enchendo-me de respeito e simpatia por sua dor. Mas acho que nós dois concordamos ainda num outro ponto: "Lavoura arcaica" é o livro de um homem que viveu uma experiência excepcional, que soube expressar seu luminoso e sombrio universo em termos pessoais e que, para isso, encontrou uma linguagem que o ajudou a atravessar, vivo, o vale das sombras.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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