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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os usos da cor
HÉDIO SILVA JÚNIOR
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou recentemente um projeto de lei, de autoria do
senador José Sarney, estabelecendo políticas de promoção da igualdade racial
em várias áreas.
Trata-se de uma extraordinária vitória do movimento negro e, no limite, da
democracia brasileira, especialmente se
considerarmos que diversos projetos
análogos, apresentados por parlamentares negros ao longo das últimas décadas, terminaram naufragando justamente naquela comissão.
Dentre outras inovações do aludido
projeto, uma nos interessa mais de perto neste artigo: trata-se da reinserção,
nos registros de nascimento, da informação sobre a cor/raça do nascituro.
A fórmula encontrada para a classificação racial dos indivíduos ainda carece
de aperfeiçoamento, mesmo porque
não resolve o problema dos nascidos até
a data em que a nova lei for promulgada, mas sinaliza a possibilidade de que
um alegado problema operacional das
políticas de promoção da igualdade (a
classificação racial) não pode servir de
obstáculo para o equacionamento da
discriminação racial.
Note-se que desde 1872, data do primeiro recenseamento geral, o Brasil instituiu diferentes instrumentos e métodos para a classificação racial das pessoas.
Nessa trilha, o sistema jurídico brasileiro registra um banco de dados, de
pessoas, no qual a classificação racial é
sistematicamente empregada no cotidiano: o cadastro das áreas de Segurança Pública e de Justiça. Referimo-nos à
Lei de Execução das Estatísticas Criminais, adotada em 1941, que prescreve a
classificação racial de vítimas e acusados, por meio do critério da cor.
Desde a primeira metade do século
passado, utiliza-se a classificação racial
ancorada no critério da cor, realizada
sob a batuta dos escrivães de polícia, a
quem compete o preenchimento dos
formulários, autos de inquérito etc.
A respeito desse fato, inexiste registro
de um único indivíduo que tenha posto
em questão a cientificidade deste método, ou a adequação dos instrumentos e
técnicas nele empregados.
Antes pelo contrário. No ano de 1992,
o egrégio Tribunal de Alçada Criminal
de São Paulo confirmou uma sentença
condenatória, fundamentada em prova
de reconhecimento pessoal, na qual a
vítima teria reconhecido o autor de roubo não por seus traços fisionômicos ou
físicos, mas unicamente pela cor de sua
pele.
Enquanto prestou relevantes serviços ao racismo e à discriminação, a classificação racial sempre funcionou bem
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Ouçamos o próprio tribunal: "Reconhecimento pessoal:
Identificação baseada somente na cor;
Validade:
A afirmação da vítima de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a afirmação de ser
um deles de cor negra e reconhecê-lo, já
que o reconhecimento se dá pela segura
memorização visual de diversos traços
característicos de uma pessoa, ou de um
somente, a cor" (apelação nº 753.603/ 3,
julgada em 21/9/1992, 12ª Câmara).
Nenhuma dúvida sobre efeitos da tal
miscigenação, nenhum questionamento sobre eventuais problemas de visão
do escrivão de polícia ou da vítima, nenhum constrangimento, nada; era negro, está condenado.
É no mínimo intrigante, portanto, que
classificação racial passe a ser tida como
um problema no exato momento em
que se amplia o debate acerca da necessidade da adoção de políticas que assegurem igualdade racial substantiva.
Enquanto prestou relevantes serviços
ao racismo e à discriminação racial, a
classificação racial sempre funcionou
muito bem, obrigada.
Resta saber como a democracia racial
brasileira irá reagir no momento em
que o critério da cor se afasta do arbítrio
e passa a dialogar com a democracia e a
igualdade.
Hédio Silva Júnior, 40, advogado, doutorando
pela PUC-SP, é coordenador executivo do programa Direito e Relações Raciais, do Ceert (Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) e consultor da Unesco. Foi relator do documento brasileiro apresentado na Conferência da
ONU sobre Racismo, em Durban.
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