São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os usos da cor

HÉDIO SILVA JÚNIOR

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou recentemente um projeto de lei, de autoria do senador José Sarney, estabelecendo políticas de promoção da igualdade racial em várias áreas.
Trata-se de uma extraordinária vitória do movimento negro e, no limite, da democracia brasileira, especialmente se considerarmos que diversos projetos análogos, apresentados por parlamentares negros ao longo das últimas décadas, terminaram naufragando justamente naquela comissão.
Dentre outras inovações do aludido projeto, uma nos interessa mais de perto neste artigo: trata-se da reinserção, nos registros de nascimento, da informação sobre a cor/raça do nascituro.
A fórmula encontrada para a classificação racial dos indivíduos ainda carece de aperfeiçoamento, mesmo porque não resolve o problema dos nascidos até a data em que a nova lei for promulgada, mas sinaliza a possibilidade de que um alegado problema operacional das políticas de promoção da igualdade (a classificação racial) não pode servir de obstáculo para o equacionamento da discriminação racial.
Note-se que desde 1872, data do primeiro recenseamento geral, o Brasil instituiu diferentes instrumentos e métodos para a classificação racial das pessoas.
Nessa trilha, o sistema jurídico brasileiro registra um banco de dados, de pessoas, no qual a classificação racial é sistematicamente empregada no cotidiano: o cadastro das áreas de Segurança Pública e de Justiça. Referimo-nos à Lei de Execução das Estatísticas Criminais, adotada em 1941, que prescreve a classificação racial de vítimas e acusados, por meio do critério da cor.
Desde a primeira metade do século passado, utiliza-se a classificação racial ancorada no critério da cor, realizada sob a batuta dos escrivães de polícia, a quem compete o preenchimento dos formulários, autos de inquérito etc.
A respeito desse fato, inexiste registro de um único indivíduo que tenha posto em questão a cientificidade deste método, ou a adequação dos instrumentos e técnicas nele empregados.
Antes pelo contrário. No ano de 1992, o egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo confirmou uma sentença condenatória, fundamentada em prova de reconhecimento pessoal, na qual a vítima teria reconhecido o autor de roubo não por seus traços fisionômicos ou físicos, mas unicamente pela cor de sua pele.


Enquanto prestou relevantes serviços ao racismo e à discriminação, a classificação racial sempre funcionou bem


Ouçamos o próprio tribunal: "Reconhecimento pessoal:
Identificação baseada somente na cor; Validade:
A afirmação da vítima de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a afirmação de ser um deles de cor negra e reconhecê-lo, já que o reconhecimento se dá pela segura memorização visual de diversos traços característicos de uma pessoa, ou de um somente, a cor" (apelação nº 753.603/ 3, julgada em 21/9/1992, 12ª Câmara).
Nenhuma dúvida sobre efeitos da tal miscigenação, nenhum questionamento sobre eventuais problemas de visão do escrivão de polícia ou da vítima, nenhum constrangimento, nada; era negro, está condenado.
É no mínimo intrigante, portanto, que classificação racial passe a ser tida como um problema no exato momento em que se amplia o debate acerca da necessidade da adoção de políticas que assegurem igualdade racial substantiva.
Enquanto prestou relevantes serviços ao racismo e à discriminação racial, a classificação racial sempre funcionou muito bem, obrigada.
Resta saber como a democracia racial brasileira irá reagir no momento em que o critério da cor se afasta do arbítrio e passa a dialogar com a democracia e a igualdade.


Hédio Silva Júnior, 40, advogado, doutorando pela PUC-SP, é coordenador executivo do programa Direito e Relações Raciais, do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) e consultor da Unesco. Foi relator do documento brasileiro apresentado na Conferência da ONU sobre Racismo, em Durban.



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