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JOSÉ SARNEY
Geísa, a professora de olhos tristes
Ela tinha os cabelos encaracolados, caídos sobre os ombros, os
lábios grossos, as sobrancelhas largas
e um leve olhar no olhar distante entre
a tristeza e a bondade. Era uma pobre
professorinha do Ceará, que emigrou
na saga desse sofrido povo do Nordeste, entre a esperança de viver melhor e
o desejo de voltar algum dia para rever
tudo o que deixou: a família, as marcas
de sua vida e as saudades de sua terra.
O amor também a fez viajar. Vinha
com o marido, desempregado, para a
aventura da grande cidade. O caminho natural era residir na favela, onde
desembarcam todas as esperanças
que chegam, para viver a miséria da
realidade marginalizada, do sonho da
metrópole. Ele foi para o Jóquei tratar
de cavalos; ela, para a escola ensinar
crianças a fazer brinquedos de papel, a
utilizar as mãos com materiais simples e descartáveis para fazer barquinhos, chapéus, bandeirolas. "Aprendi
a fazer bijuterias com ela", confessou
entre lágrimas Mário, um menino que
era seu aluno.
Vinha para casa, num ônibus de linha, em trajeto que se enroscava em
ruas de grande movimento e que devia ser de segurança. Sentou-se no seu
banco, o pensamento voltado para sua
vida, a vontade de ter um filho, de desenvolver as tarefas de artesã para ter
o direito de possuir uma casa.
Lembrava o Ceará. A família, os ventos do leste das praias... e esse seu
olhar triste e belo deixava-se levar pela
velocidade do ônibus, acompanhando na janela o frenesi da cidade. De repente, surgem uns gritos, outros mais,
e um homem enlouquecido lhe segura
os cabelos, faz bater seu rosto na janela, grita coisas de meter medo. As pessoas começam a chorar, outras a rezar; e ela, tomada de pânico, sente fugir todos os seus sonhos. Esse homem
é o Mancha, que destruiu sua vida na
antivida das drogas.
As horas passam, o Brasil inteiro assiste pela televisão e ouve pelo rádio o
desespero das pessoas. Chega a polícia, a tábua de salvação da ordem, a
garantia do cidadão. Ninguém entende o que ela faz. O despreparo parece
ser o seu material de trabalho. Não há
comando, nem inferior nem superior.
O bandido brinca, grita, desafia, agride, maltrata, e todos, estupefatos, assistem a essa prova extraordinária e
incompreensível de despreparo para
lidar com uma situação aparentemente no manual dos que são responsáveis pela segurança pública, um assalto a um ônibus.
Os ricos, hoje, blindam os carros.
Nas residências, cada vez mais proliferam as grades, e os pobres, aqueles
que não têm nada para ser furtado,
que enfrentam filas, ônibus sem conforto, linhas sem horário, são acossados pelo sentimento do medo. Se no
Jardim Botânico isso ocorre, o que
não passa pela cabeça das centenas de
brasileiros que viajam pelas estradas,
pelos subúrbios, pelos caminhos da
luta pela sobrevivência?
Que pena olhar as mãos calosas de
menina Geísa, que foi para o Rio em
busca da felicidade e morre pela sanha
de um bandido e por tiros da polícia.
Nada deu certo naquela tarde, nada dá
certo quando a desgraça se abate sobre os homens.
Ela volta ao Ceará, morta, mas, na
Rocinha, os seus barcos de papel irão
navegar na cabeça das crianças como
barcos da maldade, as bandeirolas que
ela fazia irão balançar não em festas de
alegria, mas como se fossem um toque
de finados.
Seus olhos não verão mais o Ceará,
mas o Brasil verá no seu martírio tudo
o que não podia acontecer. Da maldade até a incompetência.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta
coluna.
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