São Paulo, sexta-feira, 16 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Geísa, a professora de olhos tristes

Ela tinha os cabelos encaracolados, caídos sobre os ombros, os lábios grossos, as sobrancelhas largas e um leve olhar no olhar distante entre a tristeza e a bondade. Era uma pobre professorinha do Ceará, que emigrou na saga desse sofrido povo do Nordeste, entre a esperança de viver melhor e o desejo de voltar algum dia para rever tudo o que deixou: a família, as marcas de sua vida e as saudades de sua terra. O amor também a fez viajar. Vinha com o marido, desempregado, para a aventura da grande cidade. O caminho natural era residir na favela, onde desembarcam todas as esperanças que chegam, para viver a miséria da realidade marginalizada, do sonho da metrópole. Ele foi para o Jóquei tratar de cavalos; ela, para a escola ensinar crianças a fazer brinquedos de papel, a utilizar as mãos com materiais simples e descartáveis para fazer barquinhos, chapéus, bandeirolas. "Aprendi a fazer bijuterias com ela", confessou entre lágrimas Mário, um menino que era seu aluno.
Vinha para casa, num ônibus de linha, em trajeto que se enroscava em ruas de grande movimento e que devia ser de segurança. Sentou-se no seu banco, o pensamento voltado para sua vida, a vontade de ter um filho, de desenvolver as tarefas de artesã para ter o direito de possuir uma casa.
Lembrava o Ceará. A família, os ventos do leste das praias... e esse seu olhar triste e belo deixava-se levar pela velocidade do ônibus, acompanhando na janela o frenesi da cidade. De repente, surgem uns gritos, outros mais, e um homem enlouquecido lhe segura os cabelos, faz bater seu rosto na janela, grita coisas de meter medo. As pessoas começam a chorar, outras a rezar; e ela, tomada de pânico, sente fugir todos os seus sonhos. Esse homem é o Mancha, que destruiu sua vida na antivida das drogas.
As horas passam, o Brasil inteiro assiste pela televisão e ouve pelo rádio o desespero das pessoas. Chega a polícia, a tábua de salvação da ordem, a garantia do cidadão. Ninguém entende o que ela faz. O despreparo parece ser o seu material de trabalho. Não há comando, nem inferior nem superior. O bandido brinca, grita, desafia, agride, maltrata, e todos, estupefatos, assistem a essa prova extraordinária e incompreensível de despreparo para lidar com uma situação aparentemente no manual dos que são responsáveis pela segurança pública, um assalto a um ônibus.
Os ricos, hoje, blindam os carros. Nas residências, cada vez mais proliferam as grades, e os pobres, aqueles que não têm nada para ser furtado, que enfrentam filas, ônibus sem conforto, linhas sem horário, são acossados pelo sentimento do medo. Se no Jardim Botânico isso ocorre, o que não passa pela cabeça das centenas de brasileiros que viajam pelas estradas, pelos subúrbios, pelos caminhos da luta pela sobrevivência?
Que pena olhar as mãos calosas de menina Geísa, que foi para o Rio em busca da felicidade e morre pela sanha de um bandido e por tiros da polícia. Nada deu certo naquela tarde, nada dá certo quando a desgraça se abate sobre os homens.
Ela volta ao Ceará, morta, mas, na Rocinha, os seus barcos de papel irão navegar na cabeça das crianças como barcos da maldade, as bandeirolas que ela fazia irão balançar não em festas de alegria, mas como se fossem um toque de finados.
Seus olhos não verão mais o Ceará, mas o Brasil verá no seu martírio tudo o que não podia acontecer. Da maldade até a incompetência.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.

Texto Anterior: Rio de Janeiro - Mário Magalhães: A cultura da morte
Próximo Texto: Frases

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.