São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 2002

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VINICIUS TORRES FREIRE

Beira-Mar, crime e revolução

SÃO PAULO - "Um dia, o morro desce." A frase é familiar para quem viveu no Rio ou conheceu a cidade dos anos 60 aos 70. Era a expressão de uma vaga consciência culpada de elite ou de "nonchalance" cínica, decadente, um espírito de "últimos dias de paupéria". Mas a todos parecia previsível alguma revolta popular, que, pensava-se ingenuamente, poderia até tomar a forma de revolução.
"O morro" (favelas e cortiços de qualquer cidade) desceu, em especial a partir dos anos 80. Mas, como os tempos eram de individualismo e privatização, o "morro" pediu passagem na forma da empresa criminosa do tráfico, do empreendedorismo da microempresa do sequestro, do bico do assalto no sinal de trânsito.
"Sempre digo que, quando a vida se degrada e a esperança sai do coração dos homens, só a revolução", disse Oscar Niemeyer na Folha de sábado. O velho arquiteto comunista é um sobrevivente de corpo e espírito dos tempos em que se pensava generosamente que o Brasil seria uma civilização: onde as pessoas comem, têm vacinas, lêem livros e pensam com a própria cabeça os problemas nacionais. Um país criativo e decente.
Mas o cruel reacionarismo brasileiro, uma ditadura militar e 20 anos de crise degradaram a vida e expulsaram a esperança sem que fôssemos à revolução, de resto uma bobice.
O velho cinismo da elite ora é compartilhado pelos pobres, que em parte, ainda ínfima, foram ao crime. Quem conversa com garotos pobres percebe o quanto é comum o "niilismo de massa", a descrença sem limites no futuro, numa vida regular, a indiferença em relação à morte. Eles podem ser reconvertidos à esperança? Pior, vai haver esperança?
Isso não tem remédio tão cedo, pois foi obra de um descaso de décadas. Pensando bem, a situação talvez ainda piore. Parte do Estado (polícia, Justiça, cárceres e até governos e parlamentos têm cabeças-de-praia do crime) apodreceu e criou um caldo de cultura para Beira-Mares. E, enfim, o crime pior é contra os próprios pobres, pretos e pardos, a maioria dos trucidados e violentados em geral. O morro ainda não desceu todo.


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