São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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A urna eletrônica e seus efeitos


Milhões de eleitores passaram a ter suas preferências realmente contabilizadas pelo sistema representativo


JAIRO NICOLAU

Não é mera coincidência que, após a divulgação dos resultados de cada eleição, o debate sobre reforma política seja retomado no país. Em cada pleito, os analistas são dominados por um espírito pessimista que, como uma sina, tende a enfatizar possíveis aspectos negativos do nosso sistema representativo. Nesta eleição não foi diferente.
O rol das propostas de reforma apresentadas inclui a adoção do sistema distrital misto nas eleições parlamentares, o fim da possibilidade de recandidatura dos chefes do Executivo nas eleições de prefeito e governador e a adoção do voto facultativo. Nesse último caso, a constatação de um pequeno aumento da abstenção nestas eleições, comparativamente às de 1994, serve como pretexto para a defesa do fim do voto obrigatório. Essa miopia pessimista acaba fazendo com que aspectos positivos do funcionamento da democracia brasileira sejam esquecidos.
Divergindo do tom predominante, quero destacar a revolução produzida pela urna eletrônica. Desde a adoção da cédula única oficial, em 1955 (antes, os eleitores votavam nas cédulas dadas pelos partidos), votar significava marcar cruzes e escrever nomes.
Mas o ato de votar, aparentemente banal, sempre foi acompanhado por algumas dificuldades. Uma delas refere-se ao número de cargos em disputa nas eleições gerais. Em 1998, por exemplo, o eleitor defrontou-se com cinco escolhas (presidente, deputados federal e estadual, governador e senador). Outra diz respeito ao grande número de partidos e candidatos apresentados.
Esses elementos transformaram a cédula eleitoral brasileira em uma das mais complexas do mundo democrático. Some-se a isso a alta taxa de analfabetos ou semi-analfabetos. De acordo com o TSE, 35,8% dos eleitores são analfabetos ou só lêem e escrevem o nome -em quase todos os Estados do Nordeste, esse contingente supera 60%.
A discussão sobre votos nulos e em branco no país, em geral, enfatiza a dimensão de protesto, deixando de lado um aspecto dramático: uma parcela significativa de eleitores vai às urnas querendo votar, mas não consegue, devido à complexidade da cédula, e acaba errando ou deixando-a em branco.
A principal razão da introdução do voto eletrônico foi dar cabo das fraudes, ainda significativas em partes do país, sobretudo na fase de apuração dos votos. Inquestionavelmente, esse objetivo foi alcançado. Mas seu grande mérito foi ter tornado mais fácil o ato de votar para o enorme contingente de eleitores de baixa escolaridade, reduzindo, assim, de maneira impressionante os votos inválidos.
O impacto na redução dos votos em branco e nulos pode ser observado pelos resultados dos cinco Estados em que todos os eleitores votaram eletronicamente. No Amapá, o percentual de votos brancos e nulos nas eleições para a Câmara caiu de 30,5% em 1994 para 15,3% em 1998; em Roraima, a queda foi de 19,8% para 5,6%; em Alagoas, os votos em branco e nulos passaram de 49,2% para 13,5%; no Distrito Federal, a queda foi de 31,8% para 6,8%.
No Rio, o contingente de eleitores que votaram em algum candidato ou na legenda nas eleições para a Câmara subiu de 4.637.282 em 1994 para 7.114.892 em 1998; ou seja, cerca de 2,5 milhões a mais de eleitores com votos validados. Esse crescimento teve como um dos efeitos a explosão da votação de muitos candidatos à Câmara e às Assembléias Legislativas.
Nosso complexo de inferioridade institucional fez com que os analistas sempre interpretassem as altas taxas de votos inválidos nas eleições parlamentares brasileiras como evidência de crise do nosso sistema eleitoral, em geral, e de descontentamento com o voto obrigatório, em particular.
Os dados da última eleição revelam que se produziu, sem muito esforço, uma revolução política no país: milhões de eleitores passaram a ter suas preferências realmente contabilizadas pelo sistema representativo. Não dá ainda para dizer com precisão a magnitude dessa revolução, mas o número pode chegar facilmente a 10 milhões de eleitores. Parece pouco, mas aí cabem, somados, os eleitores que foram às urnas nos últimos pleitos em Portugal, na Nova Zelândia e na Finlândia.


Jairo Marconi Nicolau, 34, é professor de ciência política no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e autor de "Multipartidarismo e Democracia" (FGV Editora, 1996).




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