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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os recursos das agências de pesquisa devem passar para as universidades?
SIM
Autonomia e inovação
MARILENA CHAUI
Para responder afirmativamente
é preciso fazer duas ressalvas: 1)
não se trata da transferir para a universidade pública todos os recursos das
agências de fomento à pesquisa (a universidade não deve ter o monopólio da
pesquisa no país, e há vários aspectos e
dimensões da pesquisa que não podem
nem precisam ser atendidos pela universidade) e 2) não se trata de defender
a transferência de recursos de pesquisa
para a universidade pública tal como ela
se encontra hoje, mas só no contexto de
uma proposta geral de sua revitalização,
para que recupere a iniciativa acadêmica quanto ao ensino e à pesquisa.
A pergunta de fato suscita dúvidas
quanto à naturalidade com que, desde
alguns anos, aceita-se que o financiamento de pesquisas universitárias não é
da competência da universidade e que
esta deve ocupar uma posição subalterna ante o monopólio dos recursos pelas
agências de fomento à pesquisa.
Muitos acham natural essa situação
porque julgam a universidade pública
antiquada, burocrática, corporativa,
improdutiva. E consideram as agências
transparentes em seus procedimentos,
visto que oferecem critérios precisos e
imparciais para a concessão de auxílios,
operam com assessores externos para
julgamento e acompanhamento dos
projetos e com comissões avaliadoras
das condições orçamentárias e dos resultados dos projetos. A aceitação dessas imagens tornou-se uma espécie de
senso comum social.
Essas imagens foram produzidas, paradoxalmente, quando a universidade
pública parecia destinada a cumprir sua
finalidade como centro de novos conhecimentos, ou seja, com o crescimento das pós-graduações. No entanto, porque esse crescimento se deu na mesma
ocasião em que se consolidava a crença
na racionalidade e eficiência do mercado, um conjunto de idéias e de práticas,
nascido do fascínio pelo produtivismo e
pelas estatísticas, decretou a falência
universitária para corresponder às demandas mercantis e promoveu o processo de sua desqualificação.
A contrapartida à universidade "antiquada" foi a invenção da "modernidade" das agências de fomento e a promoção deliberada de seu poder desmedido,
visto que passaram a ser tidas como capazes de criar e subvencionar "centros
de excelência", promover o "alto nível"
intelectual, garantir a produtividade
teórica etc. O sucateamento da universidade pública não decorreu de sua ineficiência e improdutividade, foi a imagem neoliberal da eficiência e da produtividade que rebaixou a universidade e
elevou as agências.
E deixemos de lado discutir a veracidade da imagem da transparência e da
isenção das agências, pois isso nos levaria a indagar, por exemplo, qual a legitimidade de financiamentos públicos para fins privados de pesquisas em parceria com empresas privadas, que participam com parcela irrisória nos gastos e
usufruem de todo o lucro e benefício
dos resultados. Ou ainda nos faria discutir o fato de que dirigentes, assessores, membros das comissões julgadoras
e de avaliação de projetos também integram grupos universitários, e muitos
deles tornaram-se gestores quase vitalícios das agências, sem que se pudesse
impedir um poder oligárquico agindo
como se diz que agem as corporações
universitárias, isto é, por meio da distribuição de privilégios, da proteção sistemática de alguns e exclusão de outros.
Depois de aprovado em provas específicas e de ter seu projeto de pesquisa
avaliado e aceito por um orientador, um
estudante inscreve-se num curso de
pós-graduação, mas não faz o curso
nem realiza a pesquisa se não conseguir
uma bolsa de estudos. Como a universidade não dispõe de recursos para isso, o
estudante depende das agências de fomento -nas quais seu projeto pode
não ser aprovado (e não são apenas razões intelectuais que pesam).
São, portanto, as agências, em última
instância, que decidem quem faz e
quem não faz pesquisa no Brasil, e não
as universidades. São elas também que
decidem quanto ao tempo intelectualmente necessário para a pesquisa, uma
vez que, embora a universidade considere que um mestrado possa (e talvez
deva) ser feito em três anos e meio e um
doutorado em cinco, as agências definem dois e três anos, respectivamente.
Laboratórios universitários de pesquisa, projetos de grupos de docentes
pesquisadores, investigações posteriores ao doutorado, publicações de trabalhos, intercâmbio internacional dependem inteiramente dos critérios e das decisões das agências, que defendem como princípio definidor da importância
dos trabalhos a "competitividade" (dada pela quantificação da atividade dos
pesquisadores), em vez da cooperação.
Afirmar que a universidade pública
deve receber dotações próprias para a
subvenção de pesquisas significa retirá-la da posição subalterna para que seja
sujeito de suas próprias ações, isto é, autônoma. Essa democratização -pois é
disso que se trata- só ocorrerá se a universidade recuperar suas finalidades como instituição pública: compromisso
social, funcionamento democrático, autonomia intelectual e responsabilidade
no uso dos fundos públicos.
Isso não elimina, de modo nenhum, a
existência das agências de fomento,
que, além de poderem cooperar nas
pesquisas universitárias de grande porte, hão de patrocinar pesquisas que a
universidade não esteja realizando e, assim, continuar financiando os projetos
dos institutos públicos não-universitários de pesquisa. Nada impede, enfim,
que, reunidas nacionalmente, possam
patrocinar a criação de um organismo
nos moldes do CNRS francês e subvencionar seus projetos de pesquisa.
Propomos, portanto, ampliar o escopo e o alcance do financiamento público da pesquisa, assegurando, de um lado, a autonomia democrática da universidade pública e, de outro, a inovação nos campos e formas de atuação das agências de fomento.
Marilena Chaui, 61, é professora de filosofia política e história da filosofia moderna na USP.
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