São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os recursos das agências de pesquisa devem passar para as universidades?

SIM

Autonomia e inovação

MARILENA CHAUI

Para responder afirmativamente é preciso fazer duas ressalvas: 1) não se trata da transferir para a universidade pública todos os recursos das agências de fomento à pesquisa (a universidade não deve ter o monopólio da pesquisa no país, e há vários aspectos e dimensões da pesquisa que não podem nem precisam ser atendidos pela universidade) e 2) não se trata de defender a transferência de recursos de pesquisa para a universidade pública tal como ela se encontra hoje, mas só no contexto de uma proposta geral de sua revitalização, para que recupere a iniciativa acadêmica quanto ao ensino e à pesquisa.
A pergunta de fato suscita dúvidas quanto à naturalidade com que, desde alguns anos, aceita-se que o financiamento de pesquisas universitárias não é da competência da universidade e que esta deve ocupar uma posição subalterna ante o monopólio dos recursos pelas agências de fomento à pesquisa.
Muitos acham natural essa situação porque julgam a universidade pública antiquada, burocrática, corporativa, improdutiva. E consideram as agências transparentes em seus procedimentos, visto que oferecem critérios precisos e imparciais para a concessão de auxílios, operam com assessores externos para julgamento e acompanhamento dos projetos e com comissões avaliadoras das condições orçamentárias e dos resultados dos projetos. A aceitação dessas imagens tornou-se uma espécie de senso comum social.
Essas imagens foram produzidas, paradoxalmente, quando a universidade pública parecia destinada a cumprir sua finalidade como centro de novos conhecimentos, ou seja, com o crescimento das pós-graduações. No entanto, porque esse crescimento se deu na mesma ocasião em que se consolidava a crença na racionalidade e eficiência do mercado, um conjunto de idéias e de práticas, nascido do fascínio pelo produtivismo e pelas estatísticas, decretou a falência universitária para corresponder às demandas mercantis e promoveu o processo de sua desqualificação.
A contrapartida à universidade "antiquada" foi a invenção da "modernidade" das agências de fomento e a promoção deliberada de seu poder desmedido, visto que passaram a ser tidas como capazes de criar e subvencionar "centros de excelência", promover o "alto nível" intelectual, garantir a produtividade teórica etc. O sucateamento da universidade pública não decorreu de sua ineficiência e improdutividade, foi a imagem neoliberal da eficiência e da produtividade que rebaixou a universidade e elevou as agências.
E deixemos de lado discutir a veracidade da imagem da transparência e da isenção das agências, pois isso nos levaria a indagar, por exemplo, qual a legitimidade de financiamentos públicos para fins privados de pesquisas em parceria com empresas privadas, que participam com parcela irrisória nos gastos e usufruem de todo o lucro e benefício dos resultados. Ou ainda nos faria discutir o fato de que dirigentes, assessores, membros das comissões julgadoras e de avaliação de projetos também integram grupos universitários, e muitos deles tornaram-se gestores quase vitalícios das agências, sem que se pudesse impedir um poder oligárquico agindo como se diz que agem as corporações universitárias, isto é, por meio da distribuição de privilégios, da proteção sistemática de alguns e exclusão de outros.
Depois de aprovado em provas específicas e de ter seu projeto de pesquisa avaliado e aceito por um orientador, um estudante inscreve-se num curso de pós-graduação, mas não faz o curso nem realiza a pesquisa se não conseguir uma bolsa de estudos. Como a universidade não dispõe de recursos para isso, o estudante depende das agências de fomento -nas quais seu projeto pode não ser aprovado (e não são apenas razões intelectuais que pesam).
São, portanto, as agências, em última instância, que decidem quem faz e quem não faz pesquisa no Brasil, e não as universidades. São elas também que decidem quanto ao tempo intelectualmente necessário para a pesquisa, uma vez que, embora a universidade considere que um mestrado possa (e talvez deva) ser feito em três anos e meio e um doutorado em cinco, as agências definem dois e três anos, respectivamente.
Laboratórios universitários de pesquisa, projetos de grupos de docentes pesquisadores, investigações posteriores ao doutorado, publicações de trabalhos, intercâmbio internacional dependem inteiramente dos critérios e das decisões das agências, que defendem como princípio definidor da importância dos trabalhos a "competitividade" (dada pela quantificação da atividade dos pesquisadores), em vez da cooperação.
Afirmar que a universidade pública deve receber dotações próprias para a subvenção de pesquisas significa retirá-la da posição subalterna para que seja sujeito de suas próprias ações, isto é, autônoma. Essa democratização -pois é disso que se trata- só ocorrerá se a universidade recuperar suas finalidades como instituição pública: compromisso social, funcionamento democrático, autonomia intelectual e responsabilidade no uso dos fundos públicos.
Isso não elimina, de modo nenhum, a existência das agências de fomento, que, além de poderem cooperar nas pesquisas universitárias de grande porte, hão de patrocinar pesquisas que a universidade não esteja realizando e, assim, continuar financiando os projetos dos institutos públicos não-universitários de pesquisa. Nada impede, enfim, que, reunidas nacionalmente, possam patrocinar a criação de um organismo nos moldes do CNRS francês e subvencionar seus projetos de pesquisa.
Propomos, portanto, ampliar o escopo e o alcance do financiamento público da pesquisa, assegurando, de um lado, a autonomia democrática da universidade pública e, de outro, a inovação nos campos e formas de atuação das agências de fomento.


Marilena Chaui, 61, é professora de filosofia política e história da filosofia moderna na USP.


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