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São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Além da estabilidade

RICARDO CARNEIRO


O Estado brasileiro deve induzir e coordenar o desenvolvimento, para que a economia do país possa crescer novamente

"A maioria da sociedade brasileira votou pela adoção de outro modelo econômico e social, capaz de assegurar a retomada do crescimento, do desenvolvimento econômico com geração de emprego e distribuição de renda."
Luiz Inácio Lula da Silva, "Compromisso com a Mudança" (29.out.2002)

A epígrafe acima traduz um compromisso do presidente, sobre o qual não pesam disputas ou contestações. De sua realização dependerão o maior ou menor sucesso do governo e, por decorrência, a capacidade de avançar no processo transformador da sociedade.
Se não existe disputa quanto ao objetivo, certamente há quanto à forma de realizá-lo. A conciliação entre estabilidade de preços, crescimento econômico e distribuição da renda recebeu diversos tratamentos na história recente do país. Durante o regime militar, era preciso "primeiro crescer o bolo para depois distribuí-lo". Já nos anos 90, a ideologia liberal inventou o "primeiro estabilizar e depois crescer". Como ambas estratégias fracassaram, é urgente formular novas alternativas.
A reflexão sobre o assunto sugere que só é possível viabilizar a tríade de objetivos quando eles são implementados de maneira simultânea, e não sequencial. Veja-se, por exemplo, a política de estabilidade perseguida durante a era FHC. Não há dúvidas de que a sua eficácia foi progressivamente reduzida.
O superávit primário, considerado o instrumento básico para estabilizar a dívida pública, aumentou expressivamente de 3% para 4% do PIB de 1999 a 2002. Contudo, devido ao seu perfil, a dívida pública saltou de 42% para 58% do PIB no mesmo período. Auxiliado pelo baixo crescimento, o câmbio flutuante foi o responsável pela melhoria da conta corrente. Todavia, os efeitos de uma desvalorização real entre 40% e 50% da taxa de câmbio foram devastadores às empresas com débitos em dólar, à taxa de inflação e à dívida pública. Sem contar que o desequilíbrio na conta de capital mostrou-se imune às desvalorizações.
Já as metas de inflação foram sistematicamente ultrapassadas desde meados de 2001. Como pretender uma operação crível desse regime, numa economia na qual os preços flexíveis são apenas um pequeno conjunto, cerca de um quinto do total dos preços? Essa particularidade se deve aos choques cambiais de 2001 e 2002, mas também à indexação de preços administrados. A pergunta que fica dessas constatações é: o que ocorrerá com essa política macroeconômica diante de um provável novo choque externo? Não seria mais correto, em vez de aprofundá-la, associá-la a políticas de crescimento?
A retomada do crescimento econômico poderia auxiliar na estabilidade de preços pelo menos de duas formas: pelo crescimento em si, ao facilitar o ajuste corrente das contas públicas, e pela sua orientação dirigida à redução da vulnerabilidade externa, que permitiria estabilizar o câmbio e diminuir a taxa de juros, contribuindo para deter o crescimento da dívida pública e retomar o controle sobre a inflação.
Como viabilizar o crescimento diante de tais constrangimentos macroeconômicos? Seria necessário reviver o papel de coordenação e indução do desenvolvimento desempenhado pelo Estado brasileiro. Os instrumentos para realizar tal tarefa estão aí: a carga tributária, de cerca de um terço do PIB, dá a esse Estado uma capacidade singular de influenciar a alocação de recursos; as instituições financeiras públicas, que ainda representam mais de 30% do sistema financeiro nacional; e as empresas estatais de grande porte, localizadas principalmente na área de infra-estrutura.
A coordenação da ação dessas unidades de gasto e crédito pode gerar o horizonte necessário à expansão do setor privado, assegurando o crescimento da economia brasileira. Há apenas dois obstáculos a serem superados. O primeiro, mais fácil, é desprivatizar a gestão dos grandes bancos públicos. O segundo, mais difícil, é negociar com o FMI a exclusão das empresas estatais do cômputo do resultado primário.
Quanto à distribuição da renda, há que considerar duas evidências históricas. A primeira, de âmbito nacional, mostra a inviabilidade da distribuição fora de um ambiente de estabilidade de preços e crescimento econômico. É necessário combinar baixa inflação, crescimento econômico e maior oferta do emprego para garantir sua sustentabilidade. É ainda imprescindível a elevação do salário mínimo, devido à sua importância para as camadas mais pobres dos trabalhadores. A experiência internacional, por sua vez, realça a relevância de um sistema fiscal progressivo e o primado das políticas universais ante as políticas focalizadas. É muito provável que essa combinação permita o resgate progressivo da dívida social em nosso país.

Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.


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