São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cultura e violência

ARNALDO NISKIER

A cultura pode parecer enganosamente supérflua ou até desnecessária, um luxo num planeta consumido cronicamente pela violência e pela fome. Para os regimes totalitários, ela sempre representou uma ameaça, por sua insistência em levar os homens a pensar e, mais do que tudo, a pensar livre e democraticamente.
"Quando ouço alguém falar em cultura, saco o meu revólver." A frase, de uma peça antinazista de Hanns Jost, encenada em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder, acabaria atribuída a Herman Göring, chefe da Gestapo e braço direito do Führer. Há uma variante, de um magnata de Hollywood: "Quando ouço falar em cultura, puxo o meu talão de cheques". E a versão pacifista dos anos 60, do "mago" Louis Pauwels: "Quando me falam em revólver, puxo a minha cultura".
O conceito de cultura mexe com as pessoas e as instituições. Por sua índole essencialmente tolerante, por ajudar o ser humano a conhecer melhor o outro e a respeitá-lo, é o melhor instrumento que temos à mão para o desarmamento de corpos e mentes e para a paz universal.


[A cultura] é o melhor instrumento que temos à mão para o desarmamento de corpos e mentes


Estamos preocupados com o conceito de democratização da cultura. Ela não deverá ser privilégio apenas da capital, ou dos grandes centros, mas se estender ao Estado do Rio como um todo. Exposições de arte e artesanato, feiras de antigüidade, a valorização do nosso rico patrimônio histórico merecem ênfase ainda maior, levando em conta os ricos ensinamentos que trazem para a cultura do povo.
"Quando ouço falar em cultura, puxo a minha sanfona ou o meu tamborim." Estamos aludindo, evidentemente, a um dilema que entravou a expansão cultural nos anos imediatos do pós-guerra: a suposta dicotomia entre cultura clássica, ou erudita, e cultura popular. Graças, principalmente, aos meios de comunicação de massa que se expandiram de modo impressionante a partir dos anos 60, esse falso dilema foi superado. Entre nós, empreitadas como o Projeto Aquarius -e outras que o seguiram- não só levaram verdadeiras multidões a apreciarem a beleza e as sutilezas da música clássica, como têm promovido, nas últimas décadas, a integração entre música erudita e popular, mostrando que, no fundo, são apenas versões diferentes da mesma arte, variações em torno do mesmo tema.
O teatro e o seu desdobramento eletrônico, o cinema, têm levado mensagem altamente emocional a milhões, graças ao número crescente de festivais, que trouxeram ao espectador o conhecimento das novas correntes estilísticas por meio de filmes rodados nas mais diversas partes do mundo -do Irã à China, do Canadá ao Vietnã. Nessa área, o Rio de Janeiro realizou festivais internacionais de primeira grandeza, que, infelizmente, não tiveram continuidade. O Rio tem tudo para hospedar um festival internacional à altura dos maiores do mundo, como os de Cannes, Veneza e Berlim.
Nos tempos da Tropicália, Gilberto Gil, nosso atual ministro da Cultura, lançava esse repto numa de suas canções: "A cultura/ a civilização/ elas que se danem ou não/ somente me interessam/ contanto que me deixem meu licor de jenipapo/ o papo das noites de são João". A alusão é evidente: a cultura tem de ser, acima de tudo, lúdica. Na frase sutil de Selma Lagerlöf, a sueca que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, "a cultura é o que subsiste quando esquecemos tudo o que tínhamos aprendido".
Não poderia deixar de mencionar a importância da palavra em todo esse processo. Quando se acreditava, enganosamente, que a torrente audiovisual jogada sobre o indivíduo no século 20 sufocaria a palavra e anularia o seu poder, surgiu no cenário da comunicação o computador, provocando uma nova revolução. Segundo Umberto Eco, muito mais um pensador do que comunicólogo, a palavra não só foi valorizada como é onipresente na revolução da informática.
Um pensamento de Denys Thompson, no livro "Discriminação e Cultura Popular", endosso sem reservas: "Se quisermos ter uma cultura popular genuína, com suas raízes na sociedade, os meios de comunicação de massa devem continuar a partir de onde a educação, na melhor das hipóteses, termina. Nenhum grande melhoramento pode ser esperado até que uma educação mais intensa e de melhor qualidade alcance o seu impacto e os meios de comunicação fiquem ao alcance de um público arguto. O avanço mais seguro no final viria de uma educação que alimentasse a imaginação, treinasse as emoções e fortalecesse a capacidade de escolha".
É justamente aí que entra a cultura.

Arnaldo Niskier, 68, educador, membro da Academia Brasileira de Letras, é secretário estadual de Cultura do Rio de Janeiro.


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