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TENDÊNCIAS/DEBATES
É positivo que o Estado seja obrigado por decisão judicial a fornecer certos medicamentos?
SIM
Garantindo o exercício dos direitos
MARCELO SEMER
DURANTE longo período, o dogmatismo estabeleceu limites
ao Judiciário, como aplicador
neutro e apolítico de normas positivas, afastando-o do questionamento
sobre valores, como de resto a própria
teoria de um direito puro. Não é preciso ir longe para ver o desatino. Bastam as atrocidades praticadas quando
nazismo e fascismo vigoraram sob estruturas formalmente legais.
No pós-guerra, germinou a idéia do
novo constitucionalismo, moldado à
luz da dignidade humana e com a incorporação, pelo Estado de bem-estar, de pautas econômicas e sociais.
As novas Constituições passaram a
assegurar expressamente o direito à
educação, saúde, cultura e outros.
A revanche do positivismo, expressão do conservadorismo jurídico,
deu-se com a teoria das normas programáticas, segundo a qual esses novos direitos eram meras "cartas de intenção" e só seriam aplicáveis quando
ou se transformados em leis.
Premidos pelos conflitos da vida
real, com a insuficiência dos critérios
propostos pela dogmática jurídica, os
juízes começam a superar armadilhas
do positivismo, pelas quais estariam
obrigados a aplicar todas as leis, menos as fundamentais, e apreciar todos
os conflitos, exceto os políticos.
Devem fazê-lo, sobretudo, por três
motivos: a) princípios também são direitos, superiores às leis, pois previstos na Constituição; b) nenhuma lesão de direito pode deixar de ser apreciada, cláusula pétrea que representa
o direito aos direitos; c) a função do
Judiciário é impedir o abuso de poder, limitando a atuação dos demais
poderes aos termos da Constituição.
É disso que trata a obrigatoriedade
que vem sendo imposta ao Executivo,
em decisões judiciais, quanto ao fornecimento de remédios a pacientes
com gravíssimas moléstias e sem condições de adquiri-los. Situações-limites, nas quais muitas vezes a recusa
pode significar a morte. No fundo, é
uma questão relativamente prosaica,
que, ante o tradicionalismo jurídico,
ganha ares revolucionários: tutelar os
direitos é garantir o seu exercício.
Se a Constituição determina que
saúde é direito de todos e dever do Estado, impõe o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e se funda na diretriz do atendimento integral, não pode o direito
ser restringido por administradores.
Se o direito ao tratamento é direito à
saúde, como negar que o acesso a medicamentos indispensáveis à vida
também seja obrigação pública?
Ao Estado incumbe a adoção de políticas públicas que permitam ao indivíduo o gozo desses direitos, alocando
verbas suficientes para a inclusão social que determina a Constituição, em
detrimento de outras despesas menos relevantes, ainda que politicamente mais recompensadoras.
Em relação aos direitos humanos
de primeira geração, limitar o abuso
do poder é impedir mecanismos que
constranjam a liberdade. Aos direitos
de segunda geração, como educação e
saúde, é determinar a realização da
prestação pública. Nesse caso, omissão é a própria violação do direito.
O STF começa agora a analisar a
questão dos remédios. Tem importante precedente sobre políticas públicas em que se ancorar. Julgando o
recurso extraordinário nš 436.996,
acerca da obrigatoriedade de vagas na
educação infantil, a Corte Suprema já
decidiu que é possível ao juiz determinar a implementação de políticas
públicas sempre que órgãos estatais
comprometerem, com a omissão, a
eficácia de direitos sociais.
Como se vê, a discricionariedade do
administrador não é absoluta. Há
uma pauta de ações sociais a que está
vinculado pela Constituição, formando um mínimo de exigências que asseguram a dignidade humana. Prestações sociais não são meras decisões
de conveniência e oportunidade.
O ativismo judicial não é propriamente novidade, ainda que utilizado
com excessiva parcimônia por aqui.
Nos EUA, foram decisões da Corte
Suprema que abriram espaço para o
fim da segregação racial. Entre nós,
vários temas saíram das lides para
mudar a lei: proteção aos direitos da
companheira e incorporação de
crianças de seis anos ao ensino fundamental, entre outros. Quiçá o direito à
saúde saia fortalecido da discussão.
MARCELO SEMER, 41, juiz de direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.
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