São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Oziel e aos meninos do Brasil

LUIZ EDUARDO GREENHALGH

Oziel Alves Pereira não chegou a ser menino um de rua. Não sofreu torturas dentro das Febems. Enfrentando problemas familiares, vagou durante um tempo pelo bairro da Paz, lá no sul do Pará, até conhecer, aos 17 anos, o movimento que iria lhe dar a ideologia necessária, como dizia Cazuza, para viver. E viveu Oziel mais dois anos de sua curta vida, ceifada aos 19, entre os 19 trabalhadores sem-terra assassinados em 17 de abril de 1996, no massacre de Eldorado do Carajás (PA).
Naqueles dois anos, tornou-se um dos mais queridos e conhecidos militantes do MST. Como dizem os companheiros que conviveram com ele, Oziel, detentor apenas da quarta série do primeiro grau (como a grande maioria dos jovens em nosso país), despontava como o mais presente nos cursos de formação.
Sua maior virtude: a solidariedade, a vontade de contribuir com os trabalhadores. Sua principal reivindicação: terra e palavra. Seu maior sonho: estudar.
Essas qualidades, porém, eram mais do que suficientes para despertar a ira daqueles que o assassinaram da forma mais bárbara, há cinco anos.
Seus algozes o obrigaram a render-se e, de joelhos, a gritar as palavras de ordem do MST. Por que tamanha ira? Cinco meses antes, em dezembro de 1995, Oziel e outros militantes do MST lideraram uma manifestação de 5.000 pessoas em Curionópolis, no conhecido Trinta (km 30 da rodovia PA-150). Além de sua determinação na luta dos trabalhadores e da influência que exercia no acampamento Macaxeira, Oziel era considerado uma pessoa solidária. Magro, alto, tinha características indígenas e mantinha os cabelos um pouco mais longos do que os jovens de sua geração.


714 trabalhadores rurais foram mortos no Pará desde 1980; só 4 réus foram condenados pelos crimes -só um está preso
Homenageamos esse lutador e todos os outros 18 mortos de Eldorado, em nome também dos meninos que enfrentam, na vida urbana, as atrocidades da tortura e as prisões decorrentes da falta de perspectivas de vida, de escola, de emprego e de futuro. Oziel via futuro para a sua geração e para as outras por vir. É importante que histórias como a dele e a de outros brasileiros tornem-se conhecidas, porque ele não morreu na solidão, morreu pela multidão de cidadãos que lutam pela dignidade do povo brasileiro, à margem do mercado, da propriedade e da solidariedade.
Um relatório recente da ONU apontou o Brasil como um dos países em que a tortura é praticada de maneira sistemática e disseminada. Diz o relatório: "A existência de uma lei que tipifica o crime de tortura é um aspecto positivo. Mas essa lei não é adotada pela maioria dos juízes e promotores". Resultados do Censo 2000 mostram que o Brasil, no quesito distribuição de renda, apresenta dados piores do que os de Botsuana.
Oziel, torturado antes do tiro fatal, e seus companheiros lutavam contra a injustiça social em todos os níveis, simbolicamente fixada na luta pela terra.
De 1980 aos primeiros meses de 2001, 714 trabalhadores rurais foram mortos no Pará, 534 deles nas regiões sul e sudeste do Estado. Em meio a esse genocídio, praticado por centenas de pistoleiros, intermediários, mandantes e policiais, apenas quatro condenações -só um está preso, apesar de ter conseguido uma transferência para Goiás, onde goza de mais comodidade.
Cinco anos se passaram desde o dia 17 de abril de 1996, no qual 19 trabalhadores morreram em conflito com a Polícia Militar. No único julgamento do caso, em agosto de 1999, presidido pelo juiz Ronaldo do Vale, três oficiais militares foram absolvidos, num cenário de erros técnicos, cerceamento da acusação e manobras oficiais para favorecer a defesa dos envolvidos. De amplo conhecimento da sociedade, esse cenário provocou a anulação, pelo Tribunal de Justiça do Pará, desse único julgamento.
Nesses dois anos, mais de uma dezena de juízes não quis assumir o processo criminal, por envolvimento em conflitos possessórios ou, como disseram alguns, "por profundo respeito à Polícia Militar". A história de nosso país está permeada de julgamentos espúrios e pela raridade de justiça na defesa dos menos favorecidos financeiramente.
A impunidade dos responsáveis pelo massacre de Eldorado, mais do que em qualquer outra chacina, ultrapassa os limites possíveis da imaginação, pois o conflito foi filmado e suas imagens exibidas. É imprescindível que a sociedade exija e cobre atitudes dignas do Judiciário. Como coloca em pema um companheiro de Oziel no MST, Charles Trucate, hoje com 23 anos (Oziel teria 25): "O poder não pode encerrar/Aqueles meninos que marcham/ Suas infâncias!"


Luiz Eduardo Greenhalgh, 53, é deputado federal (PT-SP) e advogado do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra).


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