![]() São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2001 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O dedo em riste do jornalismo moral
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Numa democracia o eleitor está diante do dilema: ou deixa para outro escolher seu representante, que vai se imiscuir no jogo do poder, ou aceita a escolha com os riscos a ela inerentes. Mas ambos estão praticando a democracia como processo de decisão aceito pela maioria. Sabe-se o preço a ser pago pela tentativa de abolir essa zona de indefinição, ela resulta na ditadura ou no jacobinismo. Ser democrático é, pois, conviver com esse risco. Mas querer a democracia implica admitir que o jogo democrático é tanto deliberativo quanto decisionista; de um lado, reconhecer a necessidade da discussão procurando o consenso, de outro, o exercício do poder antes do saber, correr o risco de que o representado como sendo válido e bom para todos se mostre inválido e prejudicial. Somente assim a decisão é tomada e o adversário, derrotado, pois, se a política é jogo, a partida não está determinada de antemão. Daí ser preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro. Desde Platão o político é acusado de ser camaleão, de viver da aparência, de precisar mais aparecer do que ser. Quando o aparecer é mero reflexo do ser, não existe política possível. Por isso Platão, adversário da democracia, imaginava a "polis" sendo regida por um filósofo. Mas é totalmente imoral ao mesmo tempo querer a democracia e igualmente querer a transparência de todas as manifestações da ação coletiva, posto que age imoralmente quem, sabendo que a ação resulta em consequências indesejáveis, acusa o outro como responsável por essa situação. É possível, todavia, contra-argumentar: o político precisa ser crível, não posso votar em quem vai me enganar. Essa contradição se resolve no processo da democracia, em primeiro lugar porque a aparência de credibilidade vai sendo testada pela coerência da ação do político e da reação do representado. A mulher de César há de ser e de aparecer honesta, mas se não for honesta do ponto de vista da aparência não terá credibilidade política; vale dizer, deixará de ser representante política.
No Brasil, tempos atrás, era possível aceitar um político que roubava mas fazia. Graças à melhoria de nossa democracia isso não é mais possível. Cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância. Compreende-se a responsabilidade da mídia nesse processo. Ela deve enunciar os fatos do ponto de vista de sua diferença e de sua verdade. Mas, como isso se faz por meio de empresas capitalistas, cuja existência depende da obtenção de lucros, deve ainda corresponder a certas expectativas de seus leitores. Sob esse aspecto, a função crítica do jornalista também é contraditória, pois visa o público necessitando garantir o interesse privado. Mas, enquanto o político se arrisca para fazer da matéria social amorfa um fato verdadeiro, o jornalista se arrisca para fazer da verdade uma crença social. A mídia, se de um lado é guardiã da moralidade pública, de outro, por ser empresa, tende a imaginar que seu ponto de vista privativo se identifique com o ponto de vista geral. Um partido, ao negar-se como particular, é levado a minar a existência legítima de outros e, por isso, se identifica com o Estado; por sua vez, um órgão da mídia que se pensa como único instrumento da moralidade pública tende a virar partido. Na distância entre o que ela é empresa particular e guardiã da normatividade pública, entre sua particularidade e sua universalidade, infiltra-se uma contradição, que também se resolve no processo. O leitor e o telespectador devem crer na possível universalidade da informação, isto é, sua capacidade de resistir a contraprovas. Se um jornal não mais aparecer crível deixará de existir como empresa, embora possa estar tão correto como uma revista científica. Em contrapartida, se tender a enunciar juízos morais fora da realidade de risco onde se move o objeto julgado, torna-se igreja, pois atos políticos lhe aparecem marcados pelo pecado original. É obrigação da mídia informar os fatos no seu nível de realidade. Não cabe contar o enredo de uma peça como se fosse fato real, muito menos um fato político como se fosse obra de santos. Por certo, cabe-lhe o dever de zelar pela moralidade pública; deixa, porém, de ser democrática quando recusa ao fato político sua necessária aura de amoralidade. Quando um jornalista o expõe do ponto de vista de sua total transparência, destrói o caráter político desse fato e transforma sua informação em arma política a serviço de interesses totalitários. Quem dá uma informação não é responsável pela imoralidade dela, mas se responsabiliza pelo tipo de realidade que empresta ao fato descrito. Perde credibilidade ao confundir os níveis do real. Comporta-se como o paciente que, depois de consultar seu urologista, ou a paciente seu ginecologista, se sentisse violado e saísse denunciando a imoralidade da medicina. O sentido do gesto não reside no seu uso, por conseguinte, no foco visado por ele mas igualmente na zona cinzenta que permite a concentração da luz? A plenitude da luz não permite a visão. José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras) e escreve mensalmente para o caderno Mais!. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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