São Paulo, segunda-feira, 17 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Brasil paralelo

EMERSON KAPAZ

Os números falam por si. No Brasil, a economia informal responde por R$ 4 em cada R$ 10 da renda bruta nacional e por cerca de seis em cada dez empregos. São índices significativamente superiores à média mundial, a registrar patamares de informalidade que oscilam entre 9% e 24% em países como os EUA e a Índia, 25,4% na Argentina e 30,1% no México. Pelos dados do Banco Mundial, o único país a rivalizar com o Brasil nesse terreno é a Colômbia, e ambos só são superados pela Rússia.
Contudo os números brasileiros se revelam particularmente mais devastadores quando se verifica que, no âmbito do varejo de alimentos, 94% dos empregos são informais e que, na construção civil, a proporção dos empregos informais é de 70%. Pior, na última década, nove em cada dez empregos gerados no país tiveram sua origem na economia informal.
Nesse ambiente, um estudo que está sendo desenvolvido pela consultoria McKinsey traça um vasto perfil do que acontece nos bastidores da informalidade. Nesse verdadeiro Brasil paralelo criado pela ilegalidade, são poucos os setores que escapam da concorrência desleal. No varejo sonegam-se impostos sobre vendas. Processadores informais de alimentos tendem a ignorar padrões de qualidade fitossanitários. Construtores, também informais, não registram funcionários e horas trabalhadas. Gravadoras violam direitos autorais. O setor informal de cigarros, com 51 bilhões de unidades comercializadas ilegalmente (um terço do mercado), lidera o contrabando e alcança 22% do seu faturamento com práticas ilegais de concorrência.


O drama da elevada carga tributária produz conseqüências que vão muito além da crescente sonegação de impostos


Com maior ou menor intensidade, a ilegalidade vem crescendo continuamente.
O elo em comum no universo da ilegalidade é a magnitude da carga tributária. Há outros impasses, a exemplo da burocracia, da morosidade do Judiciário e da inflexibilidade das leis trabalhistas. Mas o que nutre e dá oxigênio a esse Brasil paralelo é o diferencial competitivo dos tributos sonegados. Em geral, países em desenvolvimento têm carga tributária corresponde a 25% do PIB. Nos países desenvolvidos, costuma haver mais cinco pontos percentuais na relação tributos/PIB.
Entre nós, apenas na década de 90 saltou-se de 14% para cerca de 35% do PIB, quando países como Japão, Cingapura, Taiwan e Coréia do Sul trilharam o caminho inverso. Em lugar de altos impostos, buscaram consolidar um sistema que combina impostos relativamente baixos, regulamentação flexível e pequena e um sistema Judiciário forte para execução das leis. Colheram o que nós deveríamos estar colhendo: baixa informalidade e alta produtividade. Situação análoga aconteceu no passado com países hoje desenvolvidos.
É preciso que todos percebam que o drama da elevada carga tributária produz conseqüências que vão muito além da crescente sonegação de impostos. Além de aprisionar a economia na camisa-de-força do não-crescimento, encurrala a sociedade com a praga da corrupção, incentiva a cultura das práticas ilegais como diferencial competitivo e, o que é igualmente nocivo, golpeia duramente aqueles que acreditam em práticas empresariais saudáveis.
Trata-se de uma nuance que também precisa ser mais bem avaliada. A ação combinada dos juros altos, da crescente burocracia, da morosidade da Justiça é cada vez mais ameaçadora para o empreendedor. O desenvolvimento brasileiro, a despeito da forte presença do Estado, sempre teve o seu motor na iniciativa privada. Desde o barão de Mauá, a figura do empresário está intimamente associada à produção e criação de riquezas, enfim, ao progresso, que é o caminho mais curto para a geração de empregos e solução dos problemas sociais.
O empresário nos dias atuais é um personagem ameaçado e sem estímulos. A formidável malha de legislações restritivas e a concorrência desleal fecham as janelas das oportunidades que deveriam se abrir após uma década de estabilização da moeda.
Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva veio a público admitir que o governo errou nas modificações introduzidas na Cofins. Foi uma atitude corajosa, sem dúvida, mas não deixa de ser reveladora dos impasses da atualidade. Há uma década discute-se a reforma tributária. No momento em que se dá um tímido passo inicial para tirá-la do papel, constata-se que ele está errado.
A conclusão é que chegou a hora das soluções reais. Além de esmiuçar os problemas, as autoridades precisam efetivamente empenhar-se para superá-los em harmonia com o empresariado e a sociedade. Como forma de cooperação, o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial vem aprofundando estudos em parceria com a McKinsey, que serão divulgados nas próximas semanas, para radiografar causas e impactos profundos do Brasil paralelo no Brasil legal e formal. É uma forma otimista de apostar nas mudanças.
O desafio é difícil de vencer. Difícil, mas não impossível. No fundo, o êxito do combate ao Brasil paralelo e a revitalização do Brasil legal e formal é muito menos uma decorrência da complexidade do problema do que uma questão de articulação, vontade e competência.

Emerson Kapaz, 49, é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Foi secretário da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (governo Covas).


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