São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

"O Clone" e o simulacro

ABDELMALEK CHERKAOUI GHAZOUANI


Ocultando a verdadeira face de Marrocos, esse trabalho sacrificou a veracidade e exaltou o exotismo barato

Desde o começo da transmissão da novela "O Clone" foi possível afirmar que o público brasileiro vibrava com a evocação de Marrocos e com tudo que tem a ver com o mundo árabe-muçulmano, a ponto de que se pudesse falar em "clonomania".
O próprio Carnaval, maior evento popular brasileiro, foi invadido por esse modismo, manifestado no uso de fantasias que imitavam o vestuário dos principais protagonistas da novela, razão pela qual viram-se inúmeras personagens Jade e vários tios Ali em meio à multidão que lotava o sambódromo.
No entanto, paralelamente a este movimento de simpatia ou até mesmo de adoção, pudemos notar que a novela "O Clone" foi uma falsificação grosseira, transmitindo imagens medíocres e um simulacro da realidade e da cultura árabe-muçulmana.
Ademais, o que poderia ter sido motivo de grande satisfação por parte dos marroquinos e de toda a comunidade árabe-muçulmana residente no Brasil tornou-se uma grande decepção, pois, desde o primeiro capítulo da novela, parte do seu elenco carregava a imagem de gente cruel, de corações obscuros e privados de qualquer sentimento de clemência e piedade. Esta visão procura ignorar, talvez propositalmente, o aspecto humano conhecido e reconhecido na civilização árabe-muçulmana -ou até mesmo, tentando passar uma imagem de vida de luxúria e indolência, descrita nas histórias d" "As Mil e Uma Noites", nas quais se inspiraram desastrosamente alguns autores.
Sob essa ótica, qualquer pessoa árabe ou muçulmana é associada aos personagens da novela. As mulheres devem, como Latifa, ser submissas, dóceis e conformistas com seus maridos, polígamos por essência; caso contrário serão obrigadas a enfrentar as imprecações e outras ameaças de chibatadas de um tal tio Ali ou um Said qualquer.
Família anacrônica, de modelos ultrapassados, carregando a marca da onipresença de um tio autoritário e da ausência absoluta do papel da mulher -esta última submetida, no máximo, ao bem-querer dos homens-, a poligamia correndo a solta e paisagens, por mais encantadoras que fossem, oferecendo a imagem de um Marrocos beduíno ou até mesmo primitivo. Tudo isso e mais outros clichês que seriam difíceis de enumerar, constituíram um pano de fundo exótico para essa novela.
Assim, os produtores desse seriado deram uma demonstração de credulidade, superficialidade e falta de cultura flagrantes, que surpreende, por se tratar de profissionais que, em princípio, deveriam se preocupar em ser suficientemente informados e mais bem assessorados quando diante de um trabalho dessa envergadura, a exemplo do que fizeram ao abordar a questão da clonagem humana.
Ocultando a verdadeira face de Marrocos -país considerado, unanimemente, ponto de encontro das civilizações, tanto passadas como atuais, com raízes fincadas na história e, ao mesmo tempo, aberto à modernidade-, esse trabalho sacrificou a veracidade, a autenticidade e exaltou o exotismo barato.
As cenas do deserto, das caravanas de camelos e das tinturarias tradicionais das ruelas de Marrakech, embora transmitissem, através das câmeras, um mundo de magia e encantamento, não deveriam se sobrepor à importância e à beleza de uma cidade como Casablanca, capital econômica do reino e verdadeira jóia da arquitetura moderna livre, nem à realidade de Marrocos como produtor e exportador de tecnologia de ponta, consumida inclusive no Brasil.
Graças a sua competência, a mulher marroquina tem conquistado muitos espaços, onde consegue expressar seu talento, ao lado de companheiros homens, seja na política, na cultura ou nas ciências. Ministra, embaixadora, artista, jornalista, magistrada são alguns dos cargos que a mulher marroquina ocupa com pleno direito.
A imagem de Marrocos e do mundo árabe-muçulmano, tal como foi apresentada na novela, é tão deplorável quanto a dos produtores desse trabalho, que optaram por soluções fáceis, na tentativa de conseguir uma grande audiência, sem o menor receio de estarem induzindo o público ao erro. Na verdade, pior do que a decepção do público árabe só a dos telespectadores brasileiros, as maiores vítimas da desinformação e da armação, o que pode custar aos produtores a própria credibilidade.
Seria oportuno saber desses produtores que reações teriam diante de uma obra qualquer, que reduzisse o Brasil a um simples país do Carnaval e do futebol, ofuscando o seu verdadeiro brilho e ocultando as diversidades de seu povo.
Em sua trajetória, Marrocos, a exemplo dos demais países em via de desenvolvimento, vive ao ritmo dos debates e enfrenta inúmeros desafios, entre os quais figura justamente o do desenvolvimento. É o debate do estático versus o dinâmico, do futuro e do progresso contra o passado e a estagnação, é a luta que envolve todas as camadas da sociedade marroquina, sem distinção entre homem e mulher.
Para mim, foi este aspecto que a novela "O Clone" omitiu, deixando escapar a oportunidade de apresentar ao seu público a realidade de outro país, de outra civilização e de outra experiência. A experiência de uma luta diária dos partidários do progresso por objetivos tais como o desenvolvimento, a dignidade do ser humano e a luta contra o preconceito e a discriminação.
De acordo com a opinião compartilhada entre a comunidade marroquina e árabe no Brasil e os brasileiros que visitaram Marrocos e o conhecem bem, a novela o clone mostrou um Marrocos muito distante da realidade, um país que só poderia existir na imaginação dos autores.


Abdelmalek Cherkaoui Ghazouani é embaixador do Reino de Marrocos no Brasil.


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