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São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O PT, o mercado e o Estado

CESAR MAIA

Há mais de dez anos, no auge do debate sobre os caminhos das esquerdas e a ascensão liberal, o então presidente de governo da Espanha, deputado Felipe González, aproveitou o lançamento da revista "Socialismo do Futuro" para afirmar idéias. Em um dos pontos de seu discurso, González procurou caracterizar de forma didática as duas grandes correntes do pensamento político. Disse ele: "Se tivermos que buscar o núcleo das idéias que explicam as duas correntes do pensamento político, podemos dizer que de um lado estão aqueles que, como eu, afirmam que a soberania popular, em última instância, expressa-se através do poder político. Do outro estão aqueles que acreditam que a soberania popular, em última instância, expressa-se através do mercado". E arrematou: "Inclusive por meio do mercado de trabalho".
Foi um recado claro de que o vetor minimizador do Estado -de forma simplista, atribuído por muitos apenas aos liberais "à outrance"- era, na verdade, muito mais abrangente e incluía amplas parcelas do movimento sindical, especialmente aquele cuja lógica se explica pela inserção nos segmentos econômicos mais poderosos e, por isso mesmo, com maior poder de concessão. Lembro-me também de quando o então governador Brizola dizia, no início dos anos 80, após uma reunião, que a natureza de Lula era dada pelo sindicalismo privado e que, quando em função pública, ela se tornaria mais clara. A desistência de Lula de exercer mandatos políticos após sua cinzenta passagem pela Constituinte confirmava essa análise. A escolha do atual presidente da CUT, diretamente decidida pelo presidente da República, também.
Essas análises e questões talvez nos ajudem a entender a natureza do atual governo federal. Há um hibridismo entre a esquerda tradicional, que se movimenta pragmaticamente por razões ditas táticas, esperando um melhor momento para mostrar sua natureza, e um sindicalismo virtual, que despreza o poder político e as instituições do Estado e os pensa de forma instrumental.


Num regime presidencialista, é inescapável a responsabilidade pessoal e direta do presidente
As chamadas reformas caracterizam essa situação, cristalizando e fazendo convergir essas duas asas do hibridismo governamental. O único objetivo é obter recursos adicionais e ganhar autonomia sobre a Federação, sobre o Legislativo e a sociedade. Ingenuamente, alguns governadores tentam pegar uma carona nessa orgia fiscal, para tanto aceitando serem usados em atos simbólicos de desprestígio e invasão de competências do Poder Legislativo. As relações com o MST -sindicalismo radical em cima do único setor econômico dinâmico nos dias de hoje- também expressam essa realidade.
Outra característica desse comportamento é o desprezo pela administração. A gestão governamental federal está à matroca, entregue a ninguém. O ministro Dirceu trata do que acha que é política, aviltando os partidos que despreza, seguindo a boa linha da esquerda tradicional -com um jogo muito mais cínico do que muitos jogos cínicos jogados pelo Executivo no Parlamento. O ministro da Fazenda se transforma em mero vocalizador -hábil, é bem verdade- do Banco Central. E a coordenação e gestão administrativas estão jogadas ao mar, à flutuação das iniciativas e humores de ministros que se dizem e se desdizem, tratam as políticas públicas a partir de suas visões pessoais e parciais.
O presidente, por seu turno, tem muito mais horas de comícios diários do que de trabalho e gestão. Os ministros não despacham e os processos se acumulam. Num regime presidencialista, é inescapável a responsabilidade pessoal e direta do presidente, governador ou prefeito na gestão. Sem ela, a máquina anda ou pára ao sabor dos ventos e do noticiário. Esse desprezo pelo ato de governar é, na verdade, um desprezo pelo próprio Estado, que se desintegra na ausência de gerência. Essa facilidade em denegrir carreiras em nome de exceções, de desmoralizar as instituições, usando o mesmo apelo retórico contra rajás e marajás, é o desprezo do sindicalismo liberalista pelo setor público e suas instituições.
A herança da qual tanto reclama o presidente, seu núcleo e seus acólitos, e que se traduz em taxas altas de juros, recessão etc., não é simplesmente herança do governo anterior. É herança do próprio PT e de sua forma de fazer política anterior, de sua retórica, de suas bravatas. A incerteza, que exige mais juros e mais recessão do que exigiria, é explicada pelo passado recente deles mesmos. Superado o susto -que alívio! O navio não vai afundar, diziam todos-, agora quer se saber para onde vai esse navio abastecido a aguardente, que gira em torno de si mesmo sem rumo.
A carga tributária aumenta. O recurso à poupança externa está limitado. O MST avança. Os investimentos estrangeiros refluem. As instituições e as categorias que lhes dão sustentação tremem. A incerteza aumenta. Recomendo textos de política relacionados à Teoria da Catástrofe, de René Thom. Podem ensinar que os movimentos discretos, não tanto percebidos hoje, talvez sejam o terremoto de amanhã. E que a taxa de incerteza já subiu muito. Uma leitura atenta das pesquisas mostra isso. O governo já se esvai enquanto o presidente se equilibra -até quando?-, sem piso. Lembrando Getúlio: Não se faz política sem superfície de contato.

Cesar Epitácio Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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