São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As eleições e a crise

ROBERTO BUSATO


Sem financiamento público de campanhas, o candidato eleito irá representar o povo e, sobretudo, o capital que o financiou


ELEIÇÕES, NO BRASIL , configuram um paradoxo: ao mesmo tempo em que celebram a data máxima da democracia, a renovação dos governantes pelo voto da população, a contaminam também com distorções diversas que, na seqüência, passam a condicionar e perverter todo o processo governativo. Isso, claro, não começou agora. Em 1870, dom Pedro 2º, numa reunião ministerial, diagnosticou: "As eleições, como se fazem no Brasil, são a causa de todos os nossos males políticos".
É espantoso que, 136 anos depois, o diagnóstico seja o mesmo. Em 1930, tivemos uma revolução que postulava exatamente a correção de distorções no sistema político-eleitoral. Lutou-se pela adoção do voto secreto e universal e pelo voto feminino. As eleições a bico de pena, em que o eleitor dava o seu voto a descoberto, estabeleciam o domínio dos currais eleitorais, em que a figura do chefe político -o "coronel", tão bem retratado nos romances regionalistas do século passado- reinava absoluta.
Era o império dos oligarcas, que mantinha o Brasil em profundo atraso político. Dizia-se que só uma revolução poria fim a tal descalabro. E a revolução foi feita, sem, no entanto, gerar os efeitos pretendidos. Acabou por derivar para um quadro de exceção, com o advento, em 1937, do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Manteve-se, em todo aquele período, o atraso e a truculência dos currais, já então sem as eleições.
Com a redemocratização, em 1945, ressurgiram e transmutaram-se as velhas práticas, não obstante já estar vigendo o voto secreto e universal.
Em 1958, Carlos Lacerda chegou a sugerir um "golpe cirúrgico" para que a reforma política fosse feita. Dizia que os parlamentares jamais mudariam o sistema pelo qual haviam sido eleitos. Por mais abominável que fosse, os tornara vitoriosos. A saída que sugeria -prontamente repelida- era a de fechar temporariamente o Congresso e, de cima para baixo, impor a reforma. Seis anos depois, eclodia o golpe militar de 64, de cuja pauta constava a reforma política.
Mudanças, de fato, foram feitas -entre as quais a imposição de um bipartidarismo artificial-, mas não a ponto de gerar efeitos saneadores. Arbítrio, diga-se de passagem, não saneia nada -apenas castra, intimida.
O regime militar profanou a proporcionalidade das bancadas na Câmara dos Deputados, sobrevalorizando a representação dos pequenos Estados em detrimento dos grandes.
Chegou-se ao disparate de um eleitor do Acre valer por mais de uma dúzia de eleitores de São Paulo. Tudo para diluir a opinião crítica dos grandes centros urbanos e valorizar a dos chamados grotões, manipulável pelo poder central em face da carência de informações.
Qualquer semelhança com o que aí está não é mera coincidência. Mudam partidos e personagens, mas os truques se perpetuam. E eis que assim chegamos aos dias de hoje. O que foram os escândalos denunciados por Roberto Jefferson no ano passado senão subprodutos de um processo eleitoral deteriorado? Mensalão, caixa dois para financiar campanhas, sanguessugas no Orçamento da União e troca-troca de partidos são algumas das trapaças concebidas pela criatividade inesgotável de maus políticos para manter-se no Poder.
Não havendo financiamento público de campanhas, em que o Estado, por meio da Justiça Eleitoral, possa exercer efetiva supervisão sobre os gastos dos partidos, há de prevalecer, mais uma vez, o comando do submundo.
O candidato, uma vez eleito, torna-se não apenas representante do povo mas também -e sobretudo- do capital que o financiou. E quem é que dispõe, hoje, no Brasil, de recursos de grande monta para investir em campanhas eleitorais milionárias? Não são muitos: todos sabem quem são.
Cria-se, então, via de mão dupla: o financiador banca a campanha e, depois, cobra a conta, exigindo que seus interesses sejam atendidos pelos que elegeu. Isso explica, por exemplo, a magnitude dos lucros de empresas que batem recordes históricos atualmente no Brasil.
Supunha-se que os escândalos do mensalão ao menos propiciariam uma reforma eleitoral consistente, que preparasse a grande reforma política anunciada para o início da próxima legislatura. Mas nada disso ocorreu.
Houve mudanças tópicas, que não foram ao cerne da questão. As atuais eleições preservam os vícios das anteriores e não oferecem perspectivas de grande renovação. Esta há de vir -é a nossa esperança- da ação organizada da sociedade civil, na qual a OAB está plenamente engajada.
Só a cidadania ativa -é a nossa convicção- há de mudar a política e os políticos do Brasil.

ROBERTO BUSATO , 52, é presidente do Conselho Federal da OAB.


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