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São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Descentralizar para unir

MIGUEL NICOLELIS

Dentre os múltiplos e complexos problemas que a sociedade brasileira enfrenta, a perpetuação dos gritantes contrastes regionais, exemplificados por alarmantes desníveis em desenvolvimento econômico, humano e social, constitui-se, indubitavelmente, no maior obstáculo ao anseio de resgatar a cidadania de milhões de brasileiros e dar um passo real no processo de edificação de uma nação verdadeiramente democrática.
Apesar de infindáveis debates acadêmicos, a triste realidade é que essa cruel desigualdade regional continua a frear o desenvolvimento de uma sociedade mais equânime, em que a busca da felicidade não seja possível apenas aos poucos ungidos pela fortuna geográfica ou financeira, mas, ao invés, constitua-se em direito inalienável de todos os brasileiros, sejam eles oriundos do sertão piauiense ou do planalto de Piratininga.
Claramente, para deixar de ser o eterno país do futuro, o Brasil precisa investir maciçamente na educação do seu povo, em particular nas regiões economicamente menos desenvolvidas. É preciso também incutir na mente dos jovens brasileiros não só o conhecimento técnico, mas também a confiança em que é possível construir um Brasil mais digno, mais justo, mais nosso. Acima de tudo, é preciso ensinar que não é crime ousar e sonhar grande, como se faz há séculos em outros países.


A descentralização científica não é incompatível com a manutenção dos centros de excelência já existentes


Além da melhoria significativa do ensino básico e profissionalizante, o processo de desenvolvimento humano no Brasil também clama por uma distribuição mais justa das oportunidades para geração e disseminação da atividade científica. Cabe, portanto, assumir de vez o inevitável. Sem uma política de gestão científica que permita a descentralização, por todo o território nacional, dos meios de produção do conhecimento científico e tecnológico, o Brasil não conseguirá competir numa economia mundial, hoje tão globalizada quanto dependente da ciência para solucionar os grandes problemas ambientais, econômicos e sociais que comprometem o futuro da humanidade.
A consequência mais direta, portanto, da manutenção de um modelo aristocrático da produção científica, hoje concentrada no Sudeste do país, será o perpetuar da enorme dívida que a nação brasileira tem para com a maioria da sua população, negando a esta os benefícios econômicos, educacionais e sociais que advêm da geração e do consumo do conhecimento científico.
Vale dizer que a descentralização científica não é incompatível com a manutenção dos centros de excelência já existentes no país. É factível multiplicar exemplos de qualidade, sem prejuízo dos bolsões de mérito já estabelecidos no Brasil. Na realidade, a experiência desses centros será fundamental no processo de estabelecimento de novos grupos de pesquisa pelo Brasil.
Conscientes de que a descentralização da produção científica pelo país afora é a única alternativa viável para o crescimento de um país como o Brasil, um grupo de neurocientistas brasileiros apresentou ao governo brasileiro uma proposta inédita: usar a ciência como um agente de transformação social. Nesse projeto, propõe-se a criação de um instituto internacional de neurociência, na pequena cidade de Macaíba, localizada na região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte.
Essa proposta foi acolhida com entusiasmo pelos ministérios da Ciência e Tecnologia, Educação, Saúde e Cultura e logo chamou a atenção da comunidade científica internacional. A razão para tanto entusiasmo é simples. Diferentemente de qualquer outro projeto científico, esse não se limitará à construção de um instituto de pesquisa de ponta. Ele incluirá também uma escola dotada de todos os recursos educacionais mais modernos para servir às crianças de Macaíba e ensiná-las o amor pelo aprender. O nosso campus também abrigará o primeiro Centro de Saúde Mental Infanto-Juvenil do Nordeste, voltado para crianças com distúrbios neurológicos e psiquiátricos.
Esse "campus do cérebro", encravado numa fazenda-escola com mais de 1.000 ha, sediará o Museu da Ciência Brasileira, dedicado a narrar a quase-desconhecida história dos feitos e ousadias dos cientistas brasileiros que, como Santos Dumont, não tiveram medo de perseguir vôos até então tidos como impossíveis.
Esses templos de pesquisa, ensino e assistência médica terão como função incentivar não só o pensamento crítico e a criação original, mas principalmente o prazer de aprender; eles proverão a infra-estrutura ideal para gerar e consumir conhecimento, com uma liberdade, com uma audácia jamais experimentadas às margens do equador. Para tanto, institutos de pesquisa de todo o mundo estão formando uma verdadeira rede distribuída de apoio cujo objetivo é transformar Natal no portal de comunicação da ciência brasileira com o mundo. Dentro dessa proposta, o instituto de Natal será apenas o primeiro de muitos outros projetos desenvolvidos pela Fundação Alberto Santos Dumont de Amparo à Pesquisa.
Essa fundação oferecerá mecanismos para que cientistas brasileiros possam levar a sua arte a outros rincões do país. O sonho é pontilhar o território nacional, do Piauí ao Chuí, com instituições que ofereçam um modelo no qual a atividade intelectual aglutine, inspire e catalise a criação de um novo Brasil.

Miguel A. L. Nicolelis, 42, professor de neurobiologia e engenharia biomédica e co-diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA), é coordenador do projeto do Instituto de Neurociência de Natal.


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