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RICARDO MELO
À beira do elevador
SÃO PAULO - No plano internacional, a brutalidade da ofensiva
contra Gaza só fazia crescer, com os
horrores costumeiros de toda guerra. Aqui no Brasil, as notícias dando
conta da escalada de demissões jogavam definitivamente por terra a
ilusão de que sairíamos incólumes
da crise financeira mundial. Isso
para não citar tormentos habituais:
o trânsito que só falta andar para
trás, a chuva que alaga a cidade, as
contas do mês etc. etc.
Quando me aproximava do elevador de todas as tardes, deparo com
uma colega de trabalho rindo sozinha. Pensei que ela, uma jovem jornalista, falasse ao celular. Imaginei:
vai ver que recebeu alguma boa notícia da família, do emprego, do namorado ou do marido, sei lá, alguma coisa importante haveria de justificar tanta satisfação. Não, ela não
estava com um telefone. Sem me
conter, perguntei o motivo de tamanha alegria. "Nada em especial, é
que a vida vai muito bem, e isso me
deixa feliz."
Fiquei desarmado. Cogitei investigar se havia alguma razão específica, como que querendo me apropriar de um pouco daquele sentimento surpreendente, que me pareceu tão ingênuo para quem, como
nós, ela, eu e tantos outros, temos
que reportar diariamente fatos chocantes e desagradáveis -infelizmente reais. Seria invasivo, porém.
Permaneci na minha. E, no fim de
tudo, o mais instigante era a aura de
mistério envolvendo a resposta: "A
vida vai muito bem".
Cético por vocação, convicção e
formação, sempre desconfiei de felicidades excessivas. Nunca consegui, nem pretendi, separar da vida
cotidiana o exercício profissional e
as descobertas que ele propicia. Afinal, como alguém pode viver sorrindo em meio a tantas injustiças, a
conflitos despropositados, ao flagelo do desemprego e da morte inesperada? Mas aquela alegria espontânea, à beira do elevador do jornal,
ajudou a lembrar que pequenas coisas também justificam grandes causas. Naquele dia, quem sabe, trabalhei melhor.
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