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CARLOS HEITOR CONY
Lagoa adormecida
RIO DE JANEIRO - Pode parecer obsessão ou falta de assunto, mas a crônica é o gênero literário que dá mais liberdade para transformar o umbigo do autor no centro do universo.
Por acaso, divido hoje meu umbigo
com o umbigo de milhares de moradores aqui da Lagoa, e tenho bons
motivos para isso, motivos que um
sociólogo diria "comunitários".
No princípio de janeiro, assalto com
mortes num prédio a cem metros daqui da minha varanda. No último sábado, assalto com morte em outro
prédio, também a cem metros de minha residência, com a única diferença topográfica do primeiro ficar à direita, e o segundo, à esquerda.
No centro, eu e minhas tralhas. A
pontaria dos assaltantes e assassinos
me parece que ainda não está ajustada, mais dia, menos dia, eles me acertam, afinal, cem metros pra lá, cem metros pra cá, e não estarei aqui para
reclamar da violência que está diminuindo em toda a cidade, mas não
aqui para os meus lados.
Sempre ouvi dizer que os incomodados devem se mudar. Seria o caso
de os moradores da Lagoa iniciarem
uma diáspora colossal, abandonando a velha Socopenapã dos tamoios
aos socós que lhe deram o nome indígena.
Pretendo ficar. E aconselho os vizinhos para que igualmente fiquem,
mas reclamem. Afinal, a Lagoa virou
uma rotatória imensa, com 64 saídas
e outras tantas entradas, é o bairro
carioca mais atraente para a prática
de qualquer violência, dá acesso a
qualquer ponto da cidade e do globo
terrestre. Pelas características do local, seria necessária uma prevenção
mais eficiente, pois, além dos prédios
assaltados, geralmente com mortes,
há assaltos avulsos em toda a orla,
mais do que em qualquer outro ponto do Rio, cuíca do Brasil.
Sem um planejamento técnico específico para as peculiaridades da
Lagoa, a solução será mesmo o êxodo
de todos nós, que para cá viemos ao
som de uma velha canção, "Sleepy
Lagoon", que falava numa lagoa
adormecida ao luar e boa para viver
e amar.
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