São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Lagoa adormecida

RIO DE JANEIRO - Pode parecer obsessão ou falta de assunto, mas a crônica é o gênero literário que dá mais liberdade para transformar o umbigo do autor no centro do universo. Por acaso, divido hoje meu umbigo com o umbigo de milhares de moradores aqui da Lagoa, e tenho bons motivos para isso, motivos que um sociólogo diria "comunitários".
No princípio de janeiro, assalto com mortes num prédio a cem metros daqui da minha varanda. No último sábado, assalto com morte em outro prédio, também a cem metros de minha residência, com a única diferença topográfica do primeiro ficar à direita, e o segundo, à esquerda.
No centro, eu e minhas tralhas. A pontaria dos assaltantes e assassinos me parece que ainda não está ajustada, mais dia, menos dia, eles me acertam, afinal, cem metros pra lá, cem metros pra cá, e não estarei aqui para reclamar da violência que está diminuindo em toda a cidade, mas não aqui para os meus lados.
Sempre ouvi dizer que os incomodados devem se mudar. Seria o caso de os moradores da Lagoa iniciarem uma diáspora colossal, abandonando a velha Socopenapã dos tamoios aos socós que lhe deram o nome indígena.
Pretendo ficar. E aconselho os vizinhos para que igualmente fiquem, mas reclamem. Afinal, a Lagoa virou uma rotatória imensa, com 64 saídas e outras tantas entradas, é o bairro carioca mais atraente para a prática de qualquer violência, dá acesso a qualquer ponto da cidade e do globo terrestre. Pelas características do local, seria necessária uma prevenção mais eficiente, pois, além dos prédios assaltados, geralmente com mortes, há assaltos avulsos em toda a orla, mais do que em qualquer outro ponto do Rio, cuíca do Brasil.
Sem um planejamento técnico específico para as peculiaridades da Lagoa, a solução será mesmo o êxodo de todos nós, que para cá viemos ao som de uma velha canção, "Sleepy Lagoon", que falava numa lagoa adormecida ao luar e boa para viver e amar.


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