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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Virada paulistana
SÃO PAULO - Ouço de uma amiga,
moderna, esclarecida (e de esquerda): "A Virada foi sensacional. Sen-sa-cio-nal! Passei horas no centro
com meu filho, numa boa. Parece
inacreditável que São Paulo consiga
fazer um evento bacana assim".
E antes que eu dissesse algo, ela
se adianta: "Sim, morreu uma pessoa. É sempre ruim, mas e daí? Uma
pessoa entre 4 milhões. Morre gente quase todo dia em briga de boteco por aí e a gente nem liga. Briga de garotos, de gangues, paciência...".
Como é de esquerda, minha amiga aproveita e dá um peteleco em
Kassab: "Tirou os ambulantes da
rua, estava difícil encontrar comida". De fato, houve quem ficasse
uma hora e meia na fila para comprar um pastel na madrugada.
A morte trágica (ou banal) do jovem Alexandre Alves Santos, 17
anos, esfaqueado na av. São João,
evoca, ironicamente, a canção talvez mais famosa da boemia paulistana -"Ronda", de Paulo Vanzolini.
"E neste dia então/ Vai dar na primeira edição/ Cena de sangue num
bar/ Da avenida São João", dizem
os versos finais do samba-canção
composto lá atrás, em 1945. Nele, o
marido que enlouquece sua amada
de ciúmes passa as horas "Bebendo
com outras mulheres/ Rolando um
dadinho/ Jogando bilhar".
É um mundo de antigamente, este dos dadinhos e do bilhar. E é curioso que essa atmosfera nostálgica
encontre abrigo e espaço entre as
atrações da Virada, ao lado de exibições de "suspensão corporal". Há
no evento, no meio de tanto som e
fúria, um desejo de resgatar o que já
foi um dia a região central. A vida,
no entanto, segue como ela é.
Mau cheiro nas ruas, lixeiras
transbordando desde cedo, banheiros químicos de menos, roubos de
carteiras, tênis e celulares, policiamento falho -longe de ser um acidente isolado, a morte na São João
se explica melhor dentro de um estado de coisas desolador.
A Virada, como iniciativa, só pode
ser apoiada. Mas o que ela revela da
cidade e das pessoas é menos a arte
do que uma complicada realidade.
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