São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2010

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Virada paulistana

SÃO PAULO - Ouço de uma amiga, moderna, esclarecida (e de esquerda): "A Virada foi sensacional. Sen-sa-cio-nal! Passei horas no centro com meu filho, numa boa. Parece inacreditável que São Paulo consiga fazer um evento bacana assim".
E antes que eu dissesse algo, ela se adianta: "Sim, morreu uma pessoa. É sempre ruim, mas e daí? Uma pessoa entre 4 milhões. Morre gente quase todo dia em briga de boteco por aí e a gente nem liga. Briga de garotos, de gangues, paciência...".
Como é de esquerda, minha amiga aproveita e dá um peteleco em Kassab: "Tirou os ambulantes da rua, estava difícil encontrar comida". De fato, houve quem ficasse uma hora e meia na fila para comprar um pastel na madrugada.
A morte trágica (ou banal) do jovem Alexandre Alves Santos, 17 anos, esfaqueado na av. São João, evoca, ironicamente, a canção talvez mais famosa da boemia paulistana -"Ronda", de Paulo Vanzolini.
"E neste dia então/ Vai dar na primeira edição/ Cena de sangue num bar/ Da avenida São João", dizem os versos finais do samba-canção composto lá atrás, em 1945. Nele, o marido que enlouquece sua amada de ciúmes passa as horas "Bebendo com outras mulheres/ Rolando um dadinho/ Jogando bilhar".
É um mundo de antigamente, este dos dadinhos e do bilhar. E é curioso que essa atmosfera nostálgica encontre abrigo e espaço entre as atrações da Virada, ao lado de exibições de "suspensão corporal". Há no evento, no meio de tanto som e fúria, um desejo de resgatar o que já foi um dia a região central. A vida, no entanto, segue como ela é.
Mau cheiro nas ruas, lixeiras transbordando desde cedo, banheiros químicos de menos, roubos de carteiras, tênis e celulares, policiamento falho -longe de ser um acidente isolado, a morte na São João se explica melhor dentro de um estado de coisas desolador.
A Virada, como iniciativa, só pode ser apoiada. Mas o que ela revela da cidade e das pessoas é menos a arte do que uma complicada realidade.


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