|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Lampião e o Iphan
Não me comove a tese de que o
São João é cafona e coisa de retirante nordestino. Certamente vem de
um acúmulo de tradições, que vão das
fogueiras, dos angus, das canjicas, milho e batatas-doces assadas, do ritmo
das zabumbas, das matracas, do elo
fortuito do compadresco de fogo até
as simulações de vestes caipiras. As ladainhas e quadrilhas são um quadro à
parte.
Até gostei de ver o presidente Lula
todo lampeiro e alegre, no seu chapéu
e na camisa xadrez, ao lado de sua mulher, revivendo um casamento na ou
da roça. Tudo coisa atávica, que não
tem censura. Não achei confortável o
ministro Palocci, que, acusado de já
ser caipira, tinha, ao contrário, um ar
de San Gennaro, em Napoli.
No mais, é uma festa de santo forte,
vinda nas caravelas das descobertas,
só que aqui ficou mais pobre e mais
alegre.
Estávamos em meio a essas divagações juninas quando tive de receber
uma comissão de funcionários do
Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão fundado por Rodrigo Mello Franco de
Andrade num momento em que o
Brasil desejava modernizar a literatura, a arquitetura e a arte toda, mas com
a visão de permanência cultural, de
um passado abandonado, que estava
todo aí nas nossas cidades e monumentos. Pois bem, neste país que é um
continente, o Iphan conta somente
com a astronômica soma de 1.193 funcionários para cumprir com sua tarefa, com o agravante de estar há 20 anos
sem concurso público. Desses funcionários, 700 têm nível superior e ganham de salário básico R$ 544! E nenhum quadro de funcionários no Brasil pode ter um grupo tão genial como
Lúcio Costa, Joaquim Cardoso, Oscar
Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade.
O ministro Gilberto Gil deve estar
tendo insônia só de pensar em como
está o Iphan. Tem apenas seis arqueólogos. A cidade de São Luís, patrimônio da humanidade, tem apenas oito
funcionários para fiscalizar, acompanhar intervenções e tudo mais que requer zelar pelo passado. E é privilegiada, pois Ouro Preto tem apenas um!
Uma comissão esteve comigo pedindo para criarmos um grupo de
"Diga Jesus", "SOS", "Socorro" ou
"Sem Patrimônio" para salvar o
Iphan. Trouxeram, de uma forma
criativa, um caminhãozinho de madeira, já que eles não dispõem de trio
elétrico nem da mobilização das grandes categorias que azucrinam o Congresso.
O que tem isso com São João? É que
o patrimônio tem o Registro dos Bens
Culturais Imateriais. E a festa de São
João é um desses bens, representativo
da cultura popular brasileira. Sabem
quantos funcionários tem esse Registro? Quatro! Pois o presidente Lula está impedindo de morrer uma tradição
que, pelo estado do Iphan, nem como
registro existiria mais.
Lampião, quando entrou na cidade
do Crato, vindo de longas travessias,
encontrou um casamento da roça que
saía da igreja. Mandou parar tudo.
Soltou o noivo e a noiva, reuniu os
convidados e deu ordem: "Todo mundo nu. "Tou" cansado e quero dançar
uma quadrilha". Começou a brincadeira: "En avant, en arrière". E Lampião "falando francês" quando um velho reclamou que não estava mais em
idade de dançar quadrilha nu. Lampião tirou o punhal e levou-o perto de
seu rosto: "O que está falando, velho
magrela?". Ele respondeu: "Oi, brincadeira boa, capitão".
O que estão fazendo com o Iphan é
uma quadrilha de Lampião: nu, sem
mato e sem cachorro.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Claudia Antunes: Reacionário alheio Próximo Texto: Frases Índice
|