São Paulo, sexta-feira, 18 de junho de 2004

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JOSÉ SARNEY

Lampião e o Iphan

Não me comove a tese de que o São João é cafona e coisa de retirante nordestino. Certamente vem de um acúmulo de tradições, que vão das fogueiras, dos angus, das canjicas, milho e batatas-doces assadas, do ritmo das zabumbas, das matracas, do elo fortuito do compadresco de fogo até as simulações de vestes caipiras. As ladainhas e quadrilhas são um quadro à parte.
Até gostei de ver o presidente Lula todo lampeiro e alegre, no seu chapéu e na camisa xadrez, ao lado de sua mulher, revivendo um casamento na ou da roça. Tudo coisa atávica, que não tem censura. Não achei confortável o ministro Palocci, que, acusado de já ser caipira, tinha, ao contrário, um ar de San Gennaro, em Napoli.
No mais, é uma festa de santo forte, vinda nas caravelas das descobertas, só que aqui ficou mais pobre e mais alegre.
Estávamos em meio a essas divagações juninas quando tive de receber uma comissão de funcionários do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão fundado por Rodrigo Mello Franco de Andrade num momento em que o Brasil desejava modernizar a literatura, a arquitetura e a arte toda, mas com a visão de permanência cultural, de um passado abandonado, que estava todo aí nas nossas cidades e monumentos. Pois bem, neste país que é um continente, o Iphan conta somente com a astronômica soma de 1.193 funcionários para cumprir com sua tarefa, com o agravante de estar há 20 anos sem concurso público. Desses funcionários, 700 têm nível superior e ganham de salário básico R$ 544! E nenhum quadro de funcionários no Brasil pode ter um grupo tão genial como Lúcio Costa, Joaquim Cardoso, Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade.
O ministro Gilberto Gil deve estar tendo insônia só de pensar em como está o Iphan. Tem apenas seis arqueólogos. A cidade de São Luís, patrimônio da humanidade, tem apenas oito funcionários para fiscalizar, acompanhar intervenções e tudo mais que requer zelar pelo passado. E é privilegiada, pois Ouro Preto tem apenas um!
Uma comissão esteve comigo pedindo para criarmos um grupo de "Diga Jesus", "SOS", "Socorro" ou "Sem Patrimônio" para salvar o Iphan. Trouxeram, de uma forma criativa, um caminhãozinho de madeira, já que eles não dispõem de trio elétrico nem da mobilização das grandes categorias que azucrinam o Congresso.
O que tem isso com São João? É que o patrimônio tem o Registro dos Bens Culturais Imateriais. E a festa de São João é um desses bens, representativo da cultura popular brasileira. Sabem quantos funcionários tem esse Registro? Quatro! Pois o presidente Lula está impedindo de morrer uma tradição que, pelo estado do Iphan, nem como registro existiria mais.
Lampião, quando entrou na cidade do Crato, vindo de longas travessias, encontrou um casamento da roça que saía da igreja. Mandou parar tudo. Soltou o noivo e a noiva, reuniu os convidados e deu ordem: "Todo mundo nu. "Tou" cansado e quero dançar uma quadrilha". Começou a brincadeira: "En avant, en arrière". E Lampião "falando francês" quando um velho reclamou que não estava mais em idade de dançar quadrilha nu. Lampião tirou o punhal e levou-o perto de seu rosto: "O que está falando, velho magrela?". Ele respondeu: "Oi, brincadeira boa, capitão".
O que estão fazendo com o Iphan é uma quadrilha de Lampião: nu, sem mato e sem cachorro.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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