São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Qual é o papel da cultura?

RICARDO MACIEIRA


O papel da cultura é definir valores. A função do Estado não pode restringir-se a ofertar bens culturais de um acervo tradicional

O PAPEL da cultura é o de definir valores, um papel prioritário, central.
Todas as revoluções, independentemente dos sonhos que as acalentaram, provocaram mudanças, mesmo que não tenham sido as desejadas. Hoje, essas mudanças se sucedem numa velocidade vertiginosa. Os textos e as obras de arte são compostos agora das mais diversas fontes. Vivemos a era da convergência, da conexão, do ritmo acelerado de circulação de idéias, conceitos e estéticas, um período de muitas possibilidades.
Experimentamos, porém, uma ausência de referências para uma apreciação estética criteriosa das manifestações culturais e para o desenvolvimento das políticas públicas de cultura, especialmente na América Latina e no Brasil, celeiro de novidades no mercado global. A banalização da atividade artística é o efeito mais perverso de um mercado generalista em que tudo virou "projeto cultural".
Essa revolução conceitual, porém, demanda um grande debate cultural:
várias vezes me pergunto em que bases vamos construir nosso futuro como nação. Será sobre a nossa força de trabalho e a nossa capacidade solidária de transformar ou será sobre a base do individualismo e da acumulação desesperada?
Construir um país pressupõe a existência de políticas públicas e de consenso. O debate de idéias é prioritário. A função do Estado não pode restringir-se a ofertar bens culturais de um acervo tradicional. A gestão pública se identifica e se faz legítima como espaço de diálogo e de ação e palco de todos os setores e atores que intervêm no fazer cultural. A cultura pode e deve exercer uma função articuladora como instrumento de transformação e de desenvolvimento.
Dois fatores interferem na gestão cultural: o primeiro está relacionado à noção de diversidade e à questão da oportunidade; o segundo, à importância da cultura para o crescimento econômico de uma cidade, a partir de uma produção variada e de qualidade, que atraia interesse de outros mercados, ampliando o valor de seu capital simbólico. Continuar a ver a cultura como privilégio de poucos é perder a oportunidade de interferir na realidade. Todo cidadão, independentemente da faixa etária ou do grupo social, é produtor e consumidor de cultura.
Não preservar e não estimular a diversidade da produção cultural é negar a sua identidade.
Os principais cenários das manifestações artísticas nas sociedades contemporâneas são as cidades. O cosmopolitismo é a continuidade e a expressão da modernidade. Ser cosmopolita não é, necessariamente, ser urbano, ambiente privilegiado de encontro e de troca de experiências diferentes. É antes de tudo uma predisposição para receber todos os mundos.
Investir na reflexão crítica é a melhor forma de estimular a internacionalização das cidades, por meio de projetos que possam fazer circular idéias e programas.
A cultura cumpre papel de convergência. Todas as ações se interligam de forma estratégica, como instrumentos de inclusão e mobilidade social. Mesmo assim, temos que nos esforçar para que novos lugares de manifestação criativa apareçam, implicando novas abordagens e temas no interior das culturas, para que cheguem a todos os cidadãos.
Muitas das novas práticas culturais e artísticas têm surgido fora do ambiente de ensino e dos espaços tradicionais. São exemplos a relação da arte com a paisagem contemporânea, a cultura decorrente das preocupações ecológicas e ambientais, do multiculturalismo e das experiências de hibridização proporcionadas pelas novas tecnologias da comunicação.
Por isso, é importante criar projetos artísticos com os quais uma comunidade se reconheça e se revitalize.
Mais desejável que a sucessão de espetáculos, de filmes e de exposições é existir, além das programações institucionais, uma gama de eventos diferenciados que podem se realizar em sítios não convencionais.
Se é verdade que há um patrimônio e uma memória que justificam o presente e devem ser a todo momento reinterpretados, é também verdade que, hoje, sofremos e nos alegramos de outras maneiras e criamos mundos de modos diferentes.
Por isso, é possível esperar pelo inimaginável, o repertório surpreendente da cultura do futuro, uma cultura em desenvolvimento, um desenvolvimento a partir da cultura.


RICARDO MACIEIRA, 51, arquiteto, é secretário das Culturas da cidade do Rio de Janeiro.

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