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São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2003

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BORIS FAUSTO

Rumos diversos

Rumos muito diversos tomaram o Brasil e a Argentina na responsabilização dos acusados pela prática de violação de direitos humanos na época dos regimes militares.
No Brasil, as leis de anistia abrangeram vítimas e torturadores, pondo uma pedra sobre o assunto. Nunca se reviu a legislação, e o acerto de contas com o triste passado limitou-se às indenizações às vítimas e aos seus parentes, algumas concedidas no curso do governo Fernando Henrique e outras sendo objeto de processos judiciais que se arrastam há longos anos.
O caso da abertura dos arquivos secretos do Exército sobre a guerrilha do Araguaia não altera substancialmente esse quadro. Vale mais como exemplo da "vacilação e indefinição" do atual governo, não no dizer da oposição, mas no do deputado petista Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado dos parentes dos mortos.
Na Argentina, os principais personagens do regime militar foram processados e condenados até que, sob pressão das Forças Armadas, duas leis estancaram outros processos -as chamadas leis de Obediência Devida e Ponto Final, aprovadas por iniciativa de governos tão diferentes quanto os de Alfonsín e Menem. Mas o mal-estar resultante da não-punição dos culpados permaneceu na sociedade como uma ferida aberta, e a eleição do presidente Néstor Kirchner trouxe uma surpresa.
Como se sabe, Kirchner lançou uma ofensiva para que sejam declaradas nulas as denominadas leis de impunidade, abrindo caminho para levar aos tribunais pelo menos 2.000 militares e membros da ditadura, acusados por delitos de sequestros, torturas, homicídios, roubos e desaparição de milhares de cidadãos entre 1976 e 1983. A decisão da Câmara dos Deputados nesse sentido foi festejada nas ruas por milhares de defensores dos direitos humanos e permitiu também recuperar algo do prestígio do Parlamento, em profunda baixa.
Ao mesmo tempo, a importante votação é apenas a primeira instância de uma batalha que deve passar pelo Senado até chegar à Corte Suprema, onde estão instalados juízes suspeitos, nomeados por Menem e hoje sob a pressão dos novos tempos.
A diferença entre o Brasil e a Argentina no trato de violências e traumas do passado revela um contraste de culturas políticas e de sensibilidades. Para o bem ou para o mal, nossa história é feita de transições e transações relativamente pacíficas -a Independência, a Abolição, o fim do regime militar-, embora seja um exagero identificar o Brasil com os traços de uma "história incruenta". Tendemos também a pôr uma pedra no passado em nome da pacificação no presente, enquanto a maioria dos argentinos, prefere não esquecer o passado, integrando-o como elemento constitutivo do presente. Vejam a persistência do peronismo multiforme, nos dias atuais, em contraste com a simples memória do getulismo, quando memória existe.
Dizer o que é certo ou errado nas respectivas culturas não faz muito sentido. Melhor será levar as diferenças em conta para um melhor conhecimento recíproco, facilitando assim, de ambos os lados, um entendimento cada vez mais estreito.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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