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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deve mudar sua tática nas negociações da Alca?
NÃO
Pela busca do desenvolvimento
FERNANDO CARDIM DE CARVALHO
Formalmente , qualquer processo
de negociação envolve questões de
duas naturezas: uma de princípios, outra de eficiência. Na primeira, define-se
o que se almeja obter dele, mas também,
e principalmente, os limites do aceitável, do que se pode oferecer. Já a eficiência diz respeito aos modos de negociação, já que tal processo raramente é de
todo transparente. Cada lado tenta
mostrar sua posição como mais forte do
que realmente é, tentando convencer o
oponente de sua própria fraqueza.
Na prática, essas duas dimensões se
confundem. Muitas vezes a busca de
uma estratégia eficiente de negociação
acaba sendo apenas um véu a cobrir a
incapacidade de defender princípios. A
flexibilidade negociadora acaba sendo
só uma disfarçada forma de rendição.
Ainda que a preocupação com a eficácia
da tática do Brasil nas negociações da
Alca seja legítima, o rumo que o debate
tomou nos últimos dias sugere que
muitos dos seus críticos buscam mais a
rendição do que a eficiência.
A postura brasileira na última reunião
da Alca tem sido caracterizada por alguns como de intransigência e desafio
ao parceiro mais importante, os EUA.
Isso estaria gerando grande irritação no
governo norte-americano, especialmente por se seguir a uma demonstração anterior de atrevimento, quando o
Brasil, junto com Índia e África do Sul,
em Cancún, organizou um grupo de
países em desenvolvimento para enfrentar as propostas em relação ao comércio de produtos agrícolas feitas pelos EUA e pela União Européia, cuja ridícula estreiteza foi apontada até mesmo por publicações conservadoras, como a revista "The Economist".
Há quem argumente até que essa postura, considerada arrogante e provocadora, de um país pequeno frente a uma
potência deve-se a inclinações antiamericanas de alguns diplomatas, mais do
que a uma escolha efetiva de estratégia.
Não há dúvidas de que posições negociadoras exageradamente rígidas podem condenar um processo de negociação ao fracasso. No entanto seria míope
e subserviente ignorar que essa rigidez
tem sido muito mais uma característica
do relacionamento externo dos EUA,
especialmente depois do 11 de Setembro, do que de seus parceiros, entre eles
o Brasil. É compreensível que atentados
terroristas daquela dimensão marcassem de forma profunda a visão que Os
EUA têm de sua posição no mundo. Infelizmente, a visão resultante foi a que
poderíamos talvez chamar de "doutrina
Bush", resumida na afirmação do presidente norte-americano de que "quem
não está conosco está contra nós". Essa
doutrina resume o unilateralismo que
tem caracterizado o relacionamento daquele país com o resto do mundo.
Quando só existem duas posições
possíveis, excludentes, não existe possibilidade de negociação, pois não há espaço para conciliação. Ou há o confronto, ou a rendição. O unilateralismo da
doutrina Bush encontrou seu ápice,
mas, ao que tudo indica, também seus
limites, no processo de decisão da invasão do Iraque. O atropelamento mesmo
de aliados tradicionais no Conselho de
Segurança da ONU não difere muito da
postura do governo americano na Alca.
Os que condenam a postura do Itamaraty na negociação da Alca usam os
mesmos argumentos dos que criticaram a França e a Alemanha quando estas se opuseram à invasão do Iraque. Os
seus governantes foram acusados de demagogia, de jogar para a platéia, de ignorar o que poderiam perder se opondo
aos impulsos imperiais da doutrina
Bush. As dificuldades que enfrentam os
EUA com a ocupação mostram que as
reservas daqueles dois países eram justificadas, e os próprios EUA parecem
estar reexaminando sua postura.
Infelizmente, esse processo de reexame não parece ter se estendido às negociações comerciais. A postura unilateralista é a mesma, cristalizada na muito
divulgada afirmação do negociador-chefe americano de que, se o Brasil não
quisesse entrar na Alca, nó iríamos comerciar com a Antártica.
Com base na expectativa de que não
cabe a nenhum país do continente outra
atitude que não a rendição pura e simples, foi feita uma proposta de abertura
de todos os setores que interessam aos
EUA, inclusive compras governamentais, ao mesmo tempo em que se bloqueia tudo o que pudesse interessar aos
outros, como o mercado agrícola. Basta
olhar os termos do "acordo" bilateral de
livre comércio assinado com o Chile,
para ter uma idéia de por que usamos o
termo rendição nesse contexto.
A Alca não pode se tornar mais um
obstáculo à retomada do desenvolvimento, que já enfrenta entraves domésticos tão grandes. A liberdade de perseguir o desenvolvimento é um princípio
fundamental e deve ser preservada a todo custo. Se isso irrita parceiros mais
fortes, é razão para preocupação e tristeza, não para recuo.
Fernando J. Cardim de Carvalho é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.
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