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São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deve mudar sua tática nas negociações da Alca?

NÃO

Pela busca do desenvolvimento

FERNANDO CARDIM DE CARVALHO

Formalmente , qualquer processo de negociação envolve questões de duas naturezas: uma de princípios, outra de eficiência. Na primeira, define-se o que se almeja obter dele, mas também, e principalmente, os limites do aceitável, do que se pode oferecer. Já a eficiência diz respeito aos modos de negociação, já que tal processo raramente é de todo transparente. Cada lado tenta mostrar sua posição como mais forte do que realmente é, tentando convencer o oponente de sua própria fraqueza.
Na prática, essas duas dimensões se confundem. Muitas vezes a busca de uma estratégia eficiente de negociação acaba sendo apenas um véu a cobrir a incapacidade de defender princípios. A flexibilidade negociadora acaba sendo só uma disfarçada forma de rendição. Ainda que a preocupação com a eficácia da tática do Brasil nas negociações da Alca seja legítima, o rumo que o debate tomou nos últimos dias sugere que muitos dos seus críticos buscam mais a rendição do que a eficiência.
A postura brasileira na última reunião da Alca tem sido caracterizada por alguns como de intransigência e desafio ao parceiro mais importante, os EUA. Isso estaria gerando grande irritação no governo norte-americano, especialmente por se seguir a uma demonstração anterior de atrevimento, quando o Brasil, junto com Índia e África do Sul, em Cancún, organizou um grupo de países em desenvolvimento para enfrentar as propostas em relação ao comércio de produtos agrícolas feitas pelos EUA e pela União Européia, cuja ridícula estreiteza foi apontada até mesmo por publicações conservadoras, como a revista "The Economist".
Há quem argumente até que essa postura, considerada arrogante e provocadora, de um país pequeno frente a uma potência deve-se a inclinações antiamericanas de alguns diplomatas, mais do que a uma escolha efetiva de estratégia.
Não há dúvidas de que posições negociadoras exageradamente rígidas podem condenar um processo de negociação ao fracasso. No entanto seria míope e subserviente ignorar que essa rigidez tem sido muito mais uma característica do relacionamento externo dos EUA, especialmente depois do 11 de Setembro, do que de seus parceiros, entre eles o Brasil. É compreensível que atentados terroristas daquela dimensão marcassem de forma profunda a visão que Os EUA têm de sua posição no mundo. Infelizmente, a visão resultante foi a que poderíamos talvez chamar de "doutrina Bush", resumida na afirmação do presidente norte-americano de que "quem não está conosco está contra nós". Essa doutrina resume o unilateralismo que tem caracterizado o relacionamento daquele país com o resto do mundo.
Quando só existem duas posições possíveis, excludentes, não existe possibilidade de negociação, pois não há espaço para conciliação. Ou há o confronto, ou a rendição. O unilateralismo da doutrina Bush encontrou seu ápice, mas, ao que tudo indica, também seus limites, no processo de decisão da invasão do Iraque. O atropelamento mesmo de aliados tradicionais no Conselho de Segurança da ONU não difere muito da postura do governo americano na Alca.
Os que condenam a postura do Itamaraty na negociação da Alca usam os mesmos argumentos dos que criticaram a França e a Alemanha quando estas se opuseram à invasão do Iraque. Os seus governantes foram acusados de demagogia, de jogar para a platéia, de ignorar o que poderiam perder se opondo aos impulsos imperiais da doutrina Bush. As dificuldades que enfrentam os EUA com a ocupação mostram que as reservas daqueles dois países eram justificadas, e os próprios EUA parecem estar reexaminando sua postura.
Infelizmente, esse processo de reexame não parece ter se estendido às negociações comerciais. A postura unilateralista é a mesma, cristalizada na muito divulgada afirmação do negociador-chefe americano de que, se o Brasil não quisesse entrar na Alca, nó iríamos comerciar com a Antártica.
Com base na expectativa de que não cabe a nenhum país do continente outra atitude que não a rendição pura e simples, foi feita uma proposta de abertura de todos os setores que interessam aos EUA, inclusive compras governamentais, ao mesmo tempo em que se bloqueia tudo o que pudesse interessar aos outros, como o mercado agrícola. Basta olhar os termos do "acordo" bilateral de livre comércio assinado com o Chile, para ter uma idéia de por que usamos o termo rendição nesse contexto.
A Alca não pode se tornar mais um obstáculo à retomada do desenvolvimento, que já enfrenta entraves domésticos tão grandes. A liberdade de perseguir o desenvolvimento é um princípio fundamental e deve ser preservada a todo custo. Se isso irrita parceiros mais fortes, é razão para preocupação e tristeza, não para recuo.


Fernando J. Cardim de Carvalho é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.


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